MAR IGNÓBIL

MAR IGNÓBIL
LIVRO LANÇADO EM 2010

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Historicidade na obra de Mario Vargas

O trabalho de pesquisa desenvolvido buscará estabelecer bases para a compreensão das relações entre literatura e história na obra do escritor peruano Mario Vargas Llosa, sem procurar analisar aspectos da rica narrativa da prosa vargas llosaiana. O estudo visa a destacar, além das paráfrases históricas que compõem os enredos dos romances, a importância dos personagens no que tange às suas participações no processo histórico, sejam eles protagonistas ou deuterogonistas e para atingir esse desiderato foi lida a maior parte da produção de Vargas Llosa como romancista, ou pelo menos os seus livros mais importantes. Ademais, não foi desconsiderada a importância do escritor no jornalismo e como crítico literário, com citações bibliográficas da sua produção na imprensa, mormente crônica, que corroboram e traduzem a importância e o relevo com que Vargas Lhosa concebe o tempo histórico.

SUMÁRIO
1) Introdução
2) Historicidade na obra de Mario Vargas Llosa
3) Conclusão

1)Introdução

O romance histórico nasceu da tradição da crônica de conquista e do exemplo europeu. Em fins do século XIX, tornasse mais interessado nos fatos políticos e sociais, convertendo-se em documento de testemunho ou participação.
Em literatura, há quatro modos de formação do enredo historiográfico: o romanesco, o trágico, o cômico e o satírico , pelos quais Vargas Llosa transitou com maestria.
No romance histórico a matéria do romancista é o tempo. Segundo Octávio Paz, confundidos presente e passado deslizam para uma cavidade oca que tritura: a história .Sem o conjunto de circunstâncias a que chamamos Grécia não existiriam nem a Ilíada nem a Odisséia; mas sem esses poemas tampouco teria existido a realidade histórica a que chamamos Grécia. Ainda segundo Paz:

A condição dual da palavra poética não é diversa da natureza do homem, ser temporal e relativo mas sempre lançado ao absoluto. Esse conflito cria a história. Dessa perspectiva o homem não é mero suceder, simples temporalidade. Se a essência da história consistisse apenas em um instante suceder o outro, um homem a outro, a mudança se resolveria em uniformidade e a história seria a natureza .

Vargas Llosa, amigo pessoal do escritor mexicano, tem clareza absoluta da importância do homem – ser humano – como ator da história, daí a importância conferida aos personagens, sejam protagonistas ou deuterogonistas, muitas vezes sua prosa assume, de fato, um caráter polissêmico.
Escritor e crítico da literatura do século XX, Vargas Llosa afirma que a literatura é:
...além de um dos mais enriquecedores afazeres do espírito, uma atividade insubstituível para a formação do cidadão numa sociedade moderna e democrática, de indivíduos livres, e que, por isso mesmo, deveria ser inculcada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas de educação como uma disciplina básica.
A literatura é um desses denominadores comuns da experiência humana, graças qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, não importa o quão distintas sejam suas ocupações e desígnios vitais, as geografias e as circunstâncias em que existam, e, inclusive os tempos históricos que determinam seus horizontes .

Entretanto, como a matéria do escritor á a ficção, o romance sempre parte do tempo psicológico, não do cronológico, sendo capaz de conferir a aparência de objetividade, conseguindo que a ficção se distancie e diferencie do real (obrigação de qualquer escritor que deseje viver por conta própria) .
Na verdade, cada escritor, no ato de realização da sua prosa, distancia-se da realidade para melhor percebê-la. Tornando-se assim um observador participante, no ato da criação literária.

2) Historicidade na obra de Mario Vargas Llosa

De tal monta é a historicidade na obra literária de Mario Vargas Llosa que, independente da ordem cronológica do lançamento de seus livros, podemos fazer breves resenhas de cada um pela representatividade que tenha referido a determinado período histórico, seja em relação ao Peru, país natal do escritor, ou a outros países onde a ocorrência de eventos históricos chamou-o a escrever romances de base factual dando vida literária aos personagens envolvidos.
Da mesma forma que José Lins do Rego deu vida aos personagens de Casa Grande & Senzala, obra maior de Gilberto Freyre, Vargas Llosa deu vida aos personagens de Os Sertões, livro reportagem de Euclides da Cunha, com outras características além das de reportagem que foge ao escopo dessa monografia comentar.
O distanciamento de Vargas Llosa da realidade peruana inclui um distanciamento geográfico, vejamos, como na condição de literato, ele demonstra isso no capítulo inicial de um dos seus livros:

“ Vim à Florença para esquecer-me um tempo do Peru e dos peruanos e eis que o malfadado país me veio ao encontro esta manhã da maneira mais inesperada. Havia visitado a reconstruída casa de Dante, a igrejinha de São Martinho Del Vescovo e a ruazinha onde a lenda diz que ele viu Beatriz pela primeira vez, quando na rua de Santa Margherita, uma vitrina me deteve de brusco: arcos, flechas, um remo lavrado, um cântaro com desenhos geométricos e um manequim embutido em uma cushina* de algodão silvestre. Mas foram três ou quatro fotografias que me devolveram, de chofre , o sabor da selva peruana. Os largos rios, as corpulentas árvores, as frágeis canoas, as fracas cabanas sobre palafitas e os viveiros de homens e mulheres seminus e lambuzados de tinta, contemplando-me fixamente de suas brilhantes cartolinas.”

O parágrafo inicial do livro acima é de um livro que trata da memória coletiva dos índios machiguengas da Amazônia peruana, que nos permite desde o início deduzir como é difícil sobre a memória de um povo para um escritor europeizado.
Mas disso não escapa nenhum intelectual do terceiro mundo. O que Vargas Llosa faz por meio de seus personagens, e identificando-se com eles, é mostrar que há uma relação inumerável desses indivíduos para melhorarem suas condições de vida, seja não se submetendo a regimes despóticos – falaremos ainda sobre isso – , seja procurando solução para as suas misérias, até mesmo com o uso consciente das circunstâncias históricas.
É o que podemos observar em seu livro mais polissêmico: A CASA VERDE, romance em que o autor ora põe o leitor entre os habitantes do subúrbio de Marigucheria, onde o vento do deserto faz chover areia todos os dias, ora em uma canoa, num igarapé, entre índios e aventureiros .
Em A CASA VERDE, pomos em relevo a personagem Bonifácia, uma ex-selvagem, servente de convento, expulsa dali por ajudar a fuga de duas meninas selvagens capturadas pelo Exército Peruano. Bonifácia, expulsa, termina por se casar com um Sargento, que reconhecia nela as virtudes para ser uma boa esposa. É assim que Bonifácia ascende na capilaridade social da condição de servente de convento par a de esposa de militar, unicamente com o uso dos parcos recursos pessoais que tem, o que confere humanidade e grandeza ao seu personagem: vencer adversidades históricas, algo que é tônica na prosa de Mario Vargas Llosa, principalmente no que tange a personagens que emergem da pobreza e da proximidade da natureza em estado bruto, caso de Bonifácia.
Mas essa temática da natureza e do homem primitivo ou do processo civilizatório em contraposição à natureza é mais aprofundada ainda no livro O PARAÍSO NA OUTRA ESQUINA , no qual Vargas Llosa apresenta o retrato pungente de duas figuras do passado: Flora Tristán e Paul Gauguin, avó e neto, a primeira com ancestralidades familiares no Peru; com cada um em seu momento procurando romper as amarras da sociedade; Flora com sua crença cega no socialismo utópico e Gauguin com a arte da pintura, ambos os personagens sendo empurrados para fins trágicos, apesar das grandezas de suas aspirações e mentes criativas.
Nesse romance, como tomada de posicionamento histórico, Vargas Llosa, narrador onipresente, chega a ser paternalista com os personagens, principalmente com Flora Tristán, que tem oportunidades de organizar uma vida “pequena burguesa” várias vezes em sua biografia, mas abre mão de tudo em função da luta pela igualdade entre os homens, num mundo que sequer precisaria de exércitos.
O romance acima comentado marca a transição do século IXX para o XX, trata de personagens nietzchineanos, Flora na onipotência cega da utopia de mudar o mundo, Gauguin na concupiscência sifilítica que o faz pintar seus últimos quadros com visão binocular (ou central), visto que as estruturas da retina responsáveis pela visão de campo haviam sido destruídas pela doença proteiniforme.
A obra de Vargas Llosa leva a refletir sobre a impossibilidade da existência da natureza estática, até mesmo a natureza humana, face ao progresso tecnológico. Gauguin morreu pobre, como Van Gogh, a leitura do romance biográfico escrito por Vargas Llosa, emociona e situa o leitor quanto às utopias do século XIX, muitas das quais permearam todo o século XX ( volta à natureza, socialismo e pansexualismo, caso de Guaguin); hoje em dia essas utopias ainda arrebatam muitos corações e mentes. A Igreja contribuiu para que Gauguin terminasse a vida quase como um mendigo. Mas numa sociedade em que os conservadores acusam a existência de uma ultraliberalidade, a expressão das condutas sexuais permeia a mídia. É interessante notar que Vargas Llosa chama a sífilis de doença impronunciável. De fato, até a descoberta da penicilina a sífilis era como a AIDS antes da oferta de medicamentos anti-retrovirais, que compõem o chamado coquetel. Uma doença impronunciável e até muito mal compreendida quanto aos meios de transmissão, chegando a ser chamada de peste moderna, é óbvio que o escritor quis que o leitor cotejasse essas duas nosologias ou morbidades, como preferirem.
Ultrapassadas as etapas relacionadas ao pêndulo entre história e natureza na obra de Vargas Llosa, podemos dizer que os romances mais densos em tempos históricos o escritor relegou ao século passado, na maioria das vezes sem usar as prerrogativas da sátira e do cômico ou mesmo da paródia. Isso devido, sem dúvida, à dramaticidade do processo histórico em toda a América Latina na centúria referenciada.
Posto o quê, leiamos abaixo um trecho do livro BATISMO DE FOGO (posteriormente, republicado no Brasil sob o título original A CIDADE E OS CÃES), para que possamos analisar:

“Nos domingos de manhã, depois do café, reza-se a missa. O capelão do colégio é um padre louro e jovial que faz sermões patrióticos exaltando a vida impoluta das grandes figuras nacionais, o seu amor a Deus e ao Peru, tecendo loas à disciplina e a ordem, e comparando os militares com os missionários, os heróis com os mártires, a Igreja com o Exército.Os alunos gostam do capelão porque sabem que é um verdadeiro macho: já o encontraram várias vezes , vestido a paisana, zanzando pelas ruas mais miseráveis de Callao, cheirando a álcool e com olhar lúbrico”.

A escolha do trecho acima se justifica porque o século XX foi dominado por guerras e estratégias diferentes das que começaram a se delinear a partir da queda do Muro de Berlim; a saber: duas guerras mundiais e a Guerra Fria, no curso das quais os militares, na América Latina, se outorgaram uma supervalorização política. Valorização essa que Vargas Llosa, em prol de forças armadas democráticas, criticou de forma acerba e coerente. Sempre em prol da verdadeira apuração dos fatos, como o fez em cinco romances: QUEM MATOU PALOMINO MOLERO ;CONVERSA NA CATEDRAL ; A FESTA DO BODE ; PANTALEÃO E AS VISITADORAS ; além do já citado BATISMO DE FOGO.
Em QUEM MATOU PALOMINO MOLERO, Vargas Llosa escreve um romance policial. O morto é um seresteiro que se alistou na Aeronáutica para ficar perto de sua amada, a filha do Coronel Mindreau, Comandante da Base Aérea. Palomino foi assassinado pelo Tenente Dufó, que pretendia casar-se com a moça, criada pelo pai viúvo e abusada por ele; não é apenas a crueldade com que Palomino é morto, que chega a chocar o mandante do crime, o Coronel, que admite que teria matado a vítima apenas com um tiro na nuca, sem ter empalado, cortado o corpo em tiras, eviscerado o testículo encontrado entre as pernas.
O inusitado é que quando o Tenente Silva e seu assistente o Soldado Lituma desvendam o crime, com o subseqüente suicídio do Coronel Mindreau, é que ninguém acredita na realidade dos fatos; inclusive que antes do suicídio o Coronel Mindreau matara a própria filha, que dera subsídios para o esclarecimento do assassinato, quando confessara que fugira com Palomino Molero e que fora resgatada pelo Tenente Dufó.
A população prefere crer que o crime fora causado por problemas de contrabando, caso de espionagem com mão do Equador e até coisa de veado. Fabulação do povo local com elementos constantes da história (versão inverídica?). Dom Jerônimo um deuterogonista de somenos importância até então, assume importância no romance, quer saber quanto os peixes graúdos pagaram para que fosse inventada a versão de que o Coronel se suicidara.
Crime elucidado os dois policiais estaduais são transferidos para localidades distantes, nas fronteiras.
Em o BATISMO DE FOGO (A CIDADE E OS CÃES), Chacal, um dos alunos mata outro aluno, o escravo, como era conhecido pejorativamente, porque era submetido a todos folguedos sádicos ( bullying). O assassinato ocorre durante um exercício de guerra, o aluno conhecido por Chacal, ao fim do romance, como demonstração inútil de hombridade, confessa o crime. Mas a direção da escola militar acolhe apenas a versão do acidente. Fica óbvia a intenção do escritor em denunciar a violência das relações humanas numa instituição formadora de falsos líderes – naquele momento em que a Guerra Fria propugnava sempre pela violência hierarquizada dentre das Forças Armadas Latino-americanas.
No veio romanesco da trama ocorre que o assassinato é um crime passional e que Ricardo Arana, o escravo, é morto pelo Chacal por que ambos disputavam a mesma namorada. Mas o Chacal é expulso do colégio militar, inclusive por brigas com o poeta, personagem com matizes autobiográficas do escritor, que o denuncia como assassino, que briga com o Chacal na mesma cela até ser massacrado, sem um grito, para que a contenda fique apenas entre os dois.
Em CONVERSA NA CATEDRAL e em A FESTA DO BODE, Vargas Llosa a corrupção e a violência avassaladoras das ditaduras de Ódria, no Peru, e de Trujillo, na República Dominicana.
Em CONVERSA NA CATEDRAL, o jornalista, personagem, Santiago Zavala dialoga com dois amigos: Ambrósio e Carlitos, numa mesa do bar A CATEDRAL, em Lima. O tempo da narrativa é o da época do ditador General Ódria, de 1948 a 1956. Filho de Dom Fermim, empresário que obtinha empreitadas para obras não licitadas com lisura pelo governo. Zavalita tem problemas de relacionamento com o pai, que por sua vez não compreende as razões que levam o filho à não querer escrever sobre política, preferindo escrever sobre esportes e ganhar mal.
Ambrósio – um dos homens de confiança do Ministro da Segurança, então trabalha num canil, para sacrificar cães sem dono, e recorda as baixezas de seu chefe. Carlitos é alcoólatra. Zavalita, na verdade, atua como observador não participante, papel de escritor. E Vargas Llosa mais uma vez demonstra o ceticismo em participar de certos processos políticos, mesmo como oposição, embora em sua biografia haja registro da candidatura à Presidência da República do Peru, quando chegou a ir ao segundo turno contra Alberto Fujimore.
Apesar de o próprio Vargas Llosa considerar CONVERSA NA CATEDRAL como sua obra maior, é em A FESTA DO BODE que consegue colocar um ditador como protagonista do romance: Rafael Leônidas Trujillo Molina – da República Dominicana, e dissecar a personalidade de um psicopata, sem psicologismos, mas deixando que o personagem se revele em todas as suas atitudes de frieza e maldade.
Os leitores hão de se lembrar de Idi Amim Dada ao lerem história romanceada de Trujillo.
Ditador capaz de fornicar com as mulheres de seus subalternos e acólitos. Como foi o caso de Urânia, filha do Senador cerebrozinho, uma das narradoras do livro, deflorada com o dedo pelo ditador impotente, após ter sido mandada pelo pai a uma festa com o ditador e ter tentado, inutilmente, por meio de um fellatio que o velho Trujillo tivesse uma ereção.
Quando Urânia, que nunca teve outro homem na vida além de Trujillo, volta à ilha onde jurara nunca mais colocar os pés, voltamos a 1961, quando a capital dominicana ainda se chamava Ciudad Trujillo. Ali um homem tiraniza três milhões de pessoas sem saber que se desenvolve uma maquiavélica trama de transição para a democracia.
Vargas Llosa, no romance em tela, dá voz a diversos personagens históricos: à esposa e aos irmãos e filho do ditador, a seus apadrinhados, aos homens que tramaram e executaram o assassinato do déspota e ao sossegado e hábil doutor Belagher – o homem da transição para a democracia, que, na ocasião, assumiu a Presidência da República Dominicana, fazendo ordens ao Banco Central para que pagasse montantes milionários aos Trujillo para que saíssem do país, mesmo porque se algo acontecesse a sua pessoa os marines americanos invadiriam a ilha, sob as ordens de Kennedy.
Em dois outros romances Vargas Llosa, ao narrar fatos verídicos, é compelido ao cômico e ao satírico e mesmo à paródia.
Em PANTALEÃO E AS VISITADORAS o escritor parodia sobre como o Exército Peruano criou um “Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteiras e Afins” com o fito de desafogar as ânsias sexuais ou ansiedades orgásticas das guarnições da Amazônia peruana.
Vejamos o que diz, no livro, o Coronel Tigre Collazoz, sobre as motivações para a criação do “Serviço de Visistadoras”:

_ Em poucas palavras, a tropa da selva está comendo as cholas. Há estupros a granel e os tribunais já nem conseguem julgar tanto safado. Toda a Amazônia está em alvoroço.

Oras, em clichês militares isso significa que houve naquele instante uma incapacidade institucional em atender à demanda de julgamentos na Justiça Militar, o que levou a uma determinação de necessidade para gerar um planejamento a fim de desreprimir essa demanda, que resultou no planejamento e na criação de um “Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteiras e Afins”.
Comparemos a situação com a de um país ocupado por Forças Armadas estrangeiras com a de um país assolado por uma ditadura militar; no primeiro caso há uma situação de guerra, com os costumeiros estupros causados pelos soldados do exercito invasor; no segundo caso também há uma situação de guerra, dentro do contexto da Guerra Fria, na qual se faz palco da “invasão” o próprio país natal dos soldados, na América Latina, no tempo das ditaduras militares, onde de fato esses estupros ocorreram e chegaram a proporções incontroláveis no Peru.No Brasil, José J. Veiga, no romance A SOMBRA DOS REIS BARBUDOS, fez uma belíssima alegoria do que é a invasão desses soldados contra o próprio povo. O livro é sombrio.
Em seu PANTALEÃO E AS VISITADORAS, Vargas Llosa, em paródia impagável, faz o relato da criação do ‘Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteiras e Afins”, da sua hipertrofia, por ser impossível manejar estatisticamente o controle da ansiedade orgástica da tropa, até o fechamento do Serviço e desbaratamento de toda a estrutura logística que fora montado, com a subseqüente ruína da carreira militar do Capitão Pantaleão Pantoja, na verdade um neurótico obsessivo, mais do que consciente da importância do cumprimento do dever e do que representaria para a sua carreira um fracasso na missão, por mais estranha que lhe parecesse.
Reparem que pela formação liberal do escritor, apesar das constantes denúncias de truculência e de abuso do poder (como é o caso do que ocorre em seu livro PANTALEÃO E AS VISITADORAS), não há nenhuma pugna em sua obra pela a implantação de regimes salvíficos como o socialismo. O escritor crê na democracia e que se um país não está bem é porque a democracia está sendo mal aplicada.
Em TIA JÚLIA E O ESCRIVINHADOR temos o mais rocambolesco romance de Vargas Llosa, mas o pano de fundo é a era do rádio no Peru, com as novelas e os costumes daquele tempo, vivido até mais tardiamente na América do Sul. È um romance de costumes, o mais autobiográfico do autor, o Varguita, ainda jovem em suas atividades literárias e tomadas de posicionamentos frente à vida. A obra de Vargas Llosa mostra assim um caleidoscópio de percepções do mundo, da história e da política, sendo o escritor capaz de assumir posições inclusive como cronista de jornal, frente a questões como o aborto, a eutanásia, os movimentos migratórios, voltaremos a esse ponto mais adiante.
Em nossa opinião, não só por ser um dos romances mais recentes de Vargas Llosa, o livro TRAVESSURAS DA MENINA MÁ(19)representa a síntese do pensamento liberal do escritor, no qual Otilita, nome real da menina má, nome que ela renega por reportá-la à infância pobre em subúrbio de Lima, é uma personagem semelhante a de Mildred do livro SERVIDÃO HUMANA de Sommerset Maughan, e tem sua confusa e interesseira trama amorosa com um tradutor profissional Ricardo Somocurcio.
A história de ambos começa nos anos 50 ( Vargas Llosa, na verdade, em quase todos os seus livros traça um vasto panorama histórico da segunda metade do século XX), em Lima. No bairro Miraflores, onde o jovem Ricardo se apaixona pela “misteriosa e estonteante chilena Lily”, que a realidade revela ser uma menina humilde de um subúrbio pobre. Ele a perde de vista, mas não consegue esquece-la.
Os dois personagens vêem seus caminhos cruzarem-se ao longo dos anos em cidades como Paris, Londres, Tóquio e Madri, à medida que esse amor cresce e se transforma – como a menina má que faz travessuras perversas, troca de nomes, aparece sem avisar, mas sempre perturba a vida pacata de Ricardo Somocurcio.
É contra o poder das circunstâncias que a menina má faz sua afirmação como personagem. É contra todas as peripécias dela que Ricardo afirma um amor de uma ética compassiva inigualável (posição do escritor frente aos que procuram a todo custo fugir da miséria e mesmo ter grandes ambições).
De fato, no início de sua trajetória a menina má está em Cuba, em treinamento para se tornar guerrilheira para depois voltar a sua terra natal – o Peru – aonde militaria pela implantação do socialismo, sem ter nenhuma formação ideológica compatível com a proposta, usando a possibilidade apenas para fugir da miséria no Peru. Caráter frívolo e oportunista, porém de uma coragem a toda prova e força de vontade irrefreável.
Em Cuba casa-se, sob nome falso, com um diplomata francês, que a leva de volta a Paris.
Não cabe aqui falar detalhadamente sobre essas peripécias, mas é justo o realce que a personagem faz das circunstâncias, até para fugir dos imbróglios conjugais que vai deixando pelo caminho. Sofregamente, sem dúvida, que por sua origem é acolhida carinhosamente por Vargas Llosa, em sua prosa romanesca ultraelaborada.





3)Conclusão

Sem tergiversar, porém por ser oportuno, findamos esse ensaio com comentários sobre a crônica OS PÉS DE FATAMAUTA , na qual não é mais o romancista que fala, mas o jornalista Vargas Llosa, que nos conta a história de Fatamauta Touray, natural da Gâmbia, que quiseram queimar viva em Baryoles, na Catalunha. Pés quebrados, juntos com costela e dentes, ao pular do sobrado onde se escondia junto com outros imigrantes.
Segundo Vargas Llosa o que Fatamauta fazia em Baryoles é fácil de saber:

Ela não estava ali veraneando, desfrutando das suaves brisas mediterrâneas, saboreando os belos manjares da comida catalã, nem praticando esportes estivais – repito que é a mais justa aspiração humana – tentando encher o estômago com o suor da fronte.

Vargas Llosa, escritor sem utopias, é um liberal e um humanista, favorável ao livre trânsito das pessoas entre os países. Optou por ser um cidadão do mundo, sem perder de vista nunca a aldeia onde nasceu, ele mesmo, guardadas as devidas proporções em relação a seus personagens fez seus movimentos migratórios e circula hoje livremente entre Lima, Londres, Paris e Madri. Foi fazendo o gancho da sua terra natal com o velho mundo, hoje chamado primeiro mundo, que construiu a maior parte da sua obra literária. A historicidade em sua prosa é a do movimento entre a América Latina e sua capital intelectual a França, mas não somente isso, talvez tenha sido o escritor e intelectual que mais devotou esforços criativos para que as realidades dos países do continente latino-americano fossem conhecidas; vejamos a publicação recente de seu DICIONÁRIO AMOROSO DA AMÉRICA LATINA , onde comenta os atrativos mais fortes de cada país – o Brasil aqui representado pelo carnaval carioca, pelo futebol e por Euclides da Cunha, Jorge Amado e Rubem Fonseca, entre outros que escreveram romances em paráfrases da história do Brasil e o Peru pela culinária e por extratos de partes seus escritos aqui, neste ensaio, representados também.
Reparem por fim que em seu dicionário Vargas Llosa cita com realce autores brasileiros que têm suas obras literárias muito ligadas à história do Brasil. Na certa essas preferências não são mera coincidência.




1) Textos teóricos
Josef, Bella Karacuchansky – História da Literatura hispano-Americana/ Bella Josef – Romance histórico . 3º ed. Rio de Janeiro: F.Alves; 1989
Lima, Luiz Costa – História.Ficção.Literatura/Luiz Costa Lima, pág. 18. São Paulo : Companhia das Letras. 2006
Paz, Octávio – Signos em rotação – Verso e Prosa.Editora Perspectiva. 1985. pág.20

2) Textos de Mario Vargas Llosa
Vargas Llosa, Mario – A verdade das mentiras/ Mario Vargas Llosa; Tradução Cordélia Magalhães; A literatura e a vida,– São Paulo: Arx, 2004. pág. 351
Vargas Llosa, Mario – A verdade das mentiras/ Mario Vargas Llosa; Tradução Cordélia Magalhães; A literatura e a vida– São Paulo: Arx, 2004. pág. 352
Vargas Llosa, Mario – Cartas a um jovem escritor: “Toda vida merece um livro”./Mario Vargas Llosa; tradução de Regina Lyra; Capítulo 6: O Tempo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
Vargas Llosa, Mario – O Falador/ Mario Vargas Llosa; tradução de Remy Gorga Filho; pág. 7, Rio de Janeiro. F. Alves, 1988
Vargas Llosa, Mario – A casa verde. Tradução de Remy Gorga Filho – F. Alves – 2º Edição, 1989
Vargas Llosa, Mario – O paraíso na outra esquina/ Mario Vargas Llosa. Tradução Waldir Dupont. 3º Edição – São Paulo. Arx – 2006.
Vargas Llosa, Mario – Batismo de fogo. Editora Nova Fronteira, 1963. Pág. 87
Vargas Llosa, Mario –Quem matou Palomino Molero/Mario Vargas Llosa. Editora ; tradução Wladir Dupont. São Paulo. Arx – 2003
Vargas Llosa, Mario –Conversa na Catedral/Mario Vargas Llosa. Editora ; tradução Wladir Dupont.São Paulo. Arx – 2004
Vargas Llosa, Mario –A festa do bode/Mario Vargas Llosa. Editora ; tradução Wladir Dupont.São Paulo. Mandarim– 2000
Vargas Llosa, Mario – Pantaleão e as visitadoras/ Mario Vargas Llosa; tradução de Ari Roitman, Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007
Vargas Llosa, Mario – Tia Julia e o escrevinhador/ Mario Vargas Llosa: tradução de Ari Roitmn e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007
Vargas Llosa, Mario – Travessuras da menina má / Mario Vargas Llosa; tradução de José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006
Vargas Llosa, Mario – A Linguagem da Paixão. Mario Vargas Llosa; tradução de Wladir Dupont. São Paulo: Arx, 2007
Vargas Llosa, Mario – Dicionário Amoroso da América Latina. Ediouro – 2007.

3 comentários:

  1. oi sou filha de josé tavares daflon filho de maria daflon gostaria de saber mais sobre a historia de nossa familia na europa dissem que temos sangue azul é verdade? cristinadaflon@r7.com

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  2. Um grande abraço a todos, gostei muito do blog, parabéns. Segue abaixo um link com uma foto aérea da Fazenda N.S.A.

    http://www.divshare.com/download/14787012-bf7

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  3. oi meu nome e andrea sou uma aluna do colegio palas atena em manaus
    estou fazendo um trabalho da escola sobre o livro orfãos de haximu , fiquei com a parte da biografia dos escritores você poderia me passar alguns sites de biografias , que falem um pouco sobre a vida de Maria Lucia Daflon
    obg pelo seu tempo

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