MAR IGNÓBIL

MAR IGNÓBIL
LIVRO LANÇADO EM 2010

sábado, 19 de junho de 2010

Medo

A eternidade é vida atemporal
Derrama-se sobre o nosso mundo
Identifica-se com a Divindade
Vai além do que pensamos

A inocência do Jardim do Edem
Desconhece tempo e os opostos
É o berço da consciência
O início das grandes transformações

O medo é a primeira experiência
Reconhecer que ainda estamos sós
Nascer e encontrar a luz
Luz dos pares e opostos

A forma de experimentar o mundo
transcende o que enforma
Sufoca-nos dentro do espaço
E é isso que todos querem

Alberto Daflon

Amnésia

Gosto do vento aos meus pés
nas nuvens das areias do tempo,
e se não deixo pegadas
caminho sobre o firmamento;
constantemente passo-me a limpo
no limbo,
não quero ser apenas um ímpio.
Creio apenas no amor constante
no espaço,
tudo que for demais eu esqueço.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

ORDEM NA FILA

D. Lia trabalhava no Posto dos Correios da Praça Sãens Pena ao fim dos anos setenta do século XX, a semana antecedia o Natal e o movimento de cartas era imenso. Hoje, com o advento do e-mail, isso não acontece mais. Cartas de amor também são menos escritas, as epístolas caíram quase em desuso. Doações para entidades filantrópicas podem ser feitas em terminais eletrônicos de bancos. O General do Exército Stanislaw Balner estava de férias, e, pela primeira vez depois de muitos anos, numa fila para postar uma quantia para um leprosário em Minas Gerais. Até hoje, depois apenas da Índia, o Brasil é o pais onde há maior taxa de incidência de hanseníase. À época chamada de lepra mesmo, doença mutiladora e sem cura, de evolução lenta. Atualmente, já existem remédios adequados para o tratamento da doença em suas fases iniciais, se descoberta antes de provocar sequelas. Voltemos ao General. Chegara enfim a hora de postar a sua doação. Ao pegar a carta, D. Lia observou que ainda estava sem selo. Educadamente, comunicou que a fila para pôr selo na carta era outra, e que o General entrara na fila errada. O militar reclamou, disse estar na fila quase uma hora, que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos estava uma bagunça. Não parava de falar, muito alterado comunicou que estava fazendo uma doação, seu tempo valia ouro, et cetera. A funcionária ouviu-o, calmamente respondeu que se o homem desejava fazer uma caridade seu maior valor talvez estivesse no esforço que fazia para exercitá-la do que no simples valor a remeter. A autoridade foi para outra fila para selar a carta. Na volta, não quis usar da prerrogativa de ser atendido logo, sem entrar na fila outra vez.
Ao ser atendido novamente, pediu para beijar a mão de D. Lia, falou-lhe sobre seu posto na hierarquia militar, que estava acostumado a dar ordens, mandar que mensageiros pagassem suas contas e resolvessem seus problemas administrativos pessoais de rua. Enfim, agradeceu-lhe pela lição de humildade.
Certas estórias de minha mãe sempre tem o dom de comover.

Os hippies em Guarapari – Três praias: 1971.

Na Tijuca, Rua José Higino, perto da perpendicular Aníbal Moreira, havia nos anos sessenta e setenta a turma da esquina, um bando de cabeludos com idades variantes de 15 aos 28, 30 anos no máximo. Eu tinha apenas 17 anos quando pus o pé na estrada. Sou aquariano, nasci no verão. Festejei muitos aniversários em dias de folia momesca. Em dezembro de 1970, os jornais noticiaram que haveria, antes do carnaval, o Festival Hippie de Guarapari, em Três Praias, hoje uma reserva florestal a beira-mar no Estado do Espírito Santo. Vou nessa, pensei. Pedi a meus pais o dinheiro para a passagem. Só vai se outros amigos seus forem juntos, disseram eles. Oquei. Perguntei se o Ricardo estava a fim de ir, Sim. Perguntei se o Guilherme queria, Sim. Compraríamos uma barraca, alguns mantimentos. A propaganda do evento rezava que haveria água potável para todos, banheiros, como se a quase virgem Três praias fosse um camping. Para quem não sabe, nas orlas das praias de Vitória, cidade do meu domicílio, há muitos hippies ainda hoje, com artesanatos na calçada postos à venda sobre uma manta de couro. O Festival Hippie de Guarapari foi, guardadas as devidas proporções, o Woodstock a brasileira.
Ricardo, hoje engenheiro, contraiu um apelido que nunca mais saiu da sua pele. Um dia, junto com uns cinco da esquina, perto da Igreja da Candelária, na Praça Pio X, ele perguntou - Que Praça PIOX é esta?
O apelido pegou tanto que até seu pai, da janela do quarto andar do prédio do Edifício Karmiol, chamava-o pelo vulgo: PIOX!...PIOX!...PIOX!... Parecia mais um pássaro da idade da pedra, um pterodáctilo, logo apelidado de TURU, ele gritava de sua janela: PIOX!...PIOX!...PIOX!...E a turma da esquina berrava de volta: TURU!...TURU!...TURU!...
Achávamos que TURU não ia deixar o PIOX ir, mas ele deixou; compramos a barraca e os gêneros tipo feijoada enlatada, macarrão, lingüiça e outras conservas, inclusive picles. Chamei uma prima que estava noiva, com o namorado na Europa e Laura chamou Virna, sua prima e em segundo grau também minha.
Exceto por um lupanar em Porto Novo do Cunha, cidade mineira as margens do rio Paraíba do Sul, aonde tive minha primeira experiência sexual mal sucedida, era um adolescente com poucos abraços e beijos em minha incipiente carreira de Don Juan. Viajei com Virna ao meu lado, e na noite de viagem ficamos abraçadinhos, mas quando chegamos ao local do festival ela tomou seu rumo e sumiu do mapa. Jamais esqueci sua blusa de seda, sem sutiã com seios redondinhos e mamilo a quase rasgar a seda.
Levamos uma garrafa de rum, de tóxicos nada sabíamos. Logo no terceiro dia Virna melou a barraca com um leite condensado que derramou dentro dela. Saúvas fizeram uma festa. Dormimos ao relento por uma noite, após uma faxina com água do mar. Sim, nada do que a imprensa propagandiara correspondia à realidade. Ficamos seis dias tomando banho de mar. Laura e Virna sumiram. Só as vimos pegando carona de volta num carro com dois marmanjos.
A bandeira do acampamento dos hippies tinha duas flâmulas: uma calcinha e uma cueca, atadas a um arbusto desfolhado no meio do acampamento, entre as barracas. Bahiano, um dos hippies toda manhã recolhia uma grana para ir comprar o pão na cidade, tinha só quatro dedos numa das mãos, como o Lula, nosso Presidente. Fizemos amizade com ele e com um cara muito especial – o Rômulo.
No dia em que dormimos fora da barraca por causa das formigas, Guilherme dormiu com a cabeça voltada para a fogueira, como não existia água potável fizéramos numa trempe improvisada a macarronada com água do mar. Acordou pondo os bofes para fora, eu e PIOX tivemos que leva-lo a uma clínica em Guarapari, onde fez hidratação venosa. Tivera uma intermação. O custo do tratamento esvaiu quase todos os nossos recursos, mesmo após difícil negociação por abatimento. Não poderíamos gastar mais nada. Os mantimentos estavam perto do fim.
Perdemos assim a oportunidade de pagar os ingressos para entrar no festival, ficamos ouvindo do lado de fora, certo momento eu e Guilherme voltamos para a barraca com uma hóspede.
A droga que rolava era a maconha. Bebemos nosso rum, Rômulo tocava violão e logo duas mineiras que tinham casa perto da área se encantaram com o rapaz de 19 anos e extremamente sensitivo em relação à natureza. Acho que as duas se apaixonaram por Rômulo, cumularam-no de atenções, e na carona do charme do nosso novo amigo fomos convidados para ir tomar banho e almoçar na casa das mineiras. Como fomos bem recebidos! Que Hospitalidade a mineira! Comemos até forrar a tripa.
Sobrara nos nossos mantimentos uma lata de azeite, uma de goiabada e um toddy. No dia seguinte fomos para a estrada. O Espírito Santo tem nas marmorarias e pedras em geral uma grande fonte de renda, exporta para o estrangeiro e vende a bom preço para a construção civil.
Pegamos carona num caminhão que tinha uma enorme pedra mármore ao centro da carroceria, nós (eu, PIOX, Guilherme e Rômulo) e uma cambada de hippies. De repente começou a rolar um baseado para todo mundo fumar, peguei a bagana e nem botei nos lábios, estava toda babada e sentia medo do que pudesse vir a sentir se fumasse.
Dormimos num posto de gasolina, precisávamos chegar até Campos dos Goitacazes, onde teríamos ainda o dinheiro para pagar a passagem até Niterói, domicílio de Rômulo. Lá ele disse que seus pais dariam dinheiro para a gente chegar ao Rio de Janeiro. No posto, dormi no chão e a lata de azeite me serviu de travesseiro.
Conseguimos a carona até Campos, pegamos o ônibus, tomamos novo banho na casa de Rômulo e fomos servidos com um lauto almoço com arroz, feijão, carne assada, batatas, água e refrigerantes.
Bahiano sem rumo na vida veio conosco.
Com o dinheiro da passagem nós (eu, PIOX, Guilherme e Bahiano) chegamos à Tijuca perto da meia noite. Não quis acordar meus pais, morava no apartamento 101 do Edifício Karmiol, escalamos a varanda sem grades e dormimos nela na noite de verão.
No dia seguinte, batemos na porta da varanda cedo, as vozes conhecidas acalmaram minha mãe. Era domingo. Fui à padaria comprar mais pão, presunto, queijo, leite. Os três e minha família ficaram juntos até o almoço.
Bahiano pegou sua mochila e nunca mais o vi.
PIOX e Guilherme foram para suas casas e são meus amigos até hoje.
Quando minha calça Lee foi lavada, ficou toda esfiapada nos fundilhos e nos joelhos, depois vi calças semelhantes serem vendidas naquele mal estado em butiques e lojas.
Três Praias se chama Três Praias por que tem duas pedras que adentram o mar ao feitio de piers, que dividem a praia em três partes. Um lugar inesquecível.

Curto-circuito

Se tu és Pandora
sou Sir Galaaz.

Se és apenas medo
eu sou claridade.

Se és uma égua
então serei trégua.

Se és uma boba
sou o teu clown.

Se és um penso
sou tua ferida.

Se és uma fivela
sou o teu cinto.

Se és a asma
sou o oxigênio

Se fores moeda
eu sou de graça.

Se fores saia
serei o vento.

Se fores doença
serei paliativo.

Se fores pé
serei o bicho.

Se fores estreita
serei heurístico.

Se fores amor
estreito ao corpo.

Se és puríssima
sou um gigolô.

Se fores folha
então sou poeta.

Se fores tempo
és a eternidade.

ELOGIO DA MADASTRA – MITOLOGIA, HUMOR E EROTISMO NUM ROMANCE DE MARIO VARGAS LLOSA.

Prolífico como romancista, o escritor peruano Vargas Llosa nunca se repete, mesmo quando coloca sua pena num mesmo viés literário. Num tempo de ambições de ultra contemporaneidade, negação da força do mito em prol duma suposta originalidade, em seu romance Elogio da Madrasta, é Eros, em sua plena imaturidade, antes do encontro com Psiquê, na figura do menino Fonchito, um pré-púbere, o principal personagem. Traquina como Huckleberry Finn, toda sua astúcia consequentemente inconsequente, feita para divertir o leitor, volta-se para o poder da sedução de Eros, de uma inocência terrível, sem culpa, como é o sentimento do amor pueril sem freios, por ser ainda paixão sem medida – amor em semente, desejo alienado dos sofrimentos que pode causar, dos dramas, das relações humanas como são, ou como foram humanizadas à revelia dos instintos e espontaneidades do ser, antes que as sementes do bem e do mal fossem plantadas nos corações e mentes.
Personagem enigma?
Vargas Llosa nos remete a uma condição de leitor em puro prazer da leitura, provoca uma empatia com o protagonista, uma compaixão pelos deuterogonistas, seu pai Dom Rigoberto, sua madrasta, a criada que tudo percebe de sua posição servil; criada que é o único liame crítico mantido pelo autor com o mundo real e suas regras de interditos; incitando em quem lê o sentimento de cumplicidade, de ser dominado pela leitura, de manter em segredo a intimidade daquela família e os rumos que as relações interpessoais tomam sob o domínio de Eros.
Força da mitologia num romance de renovação literária, auto-compaixão, servilismos dos sentimentos erógenos mais puros ao poder de Eros, retorno a dizer, em sua fase mais pueril e encantadora.
Livro essencial para os céticos, para os que em detrimento do interesse da cultura clássica se auto-denominam pós-modernos, pós - tudo; mas que são apenas pós-apocalípticos, por terem destruído a base cultural onde mesmo os mais inovadores escribas vão beber na fonte.
Romance de redenção do mito. Mais poderoso que o Caim de José Saramago e o de Márcia Denser, lidos um após o outro e casados um com o outro numa perspectiva intertextual.
Livro que redime o pré-púbere de todas as culpas incestuosas ou auto-destrutivas. Livro para ser discutido por pedagogos e psicólogos; psiquiatras infantis que medicam crianças hiperativas, desconsiderando suas pulsões da libido ainda em estado pré-consciente, sem formações reativas, sãs, em estado de diamante bruto; não por sua falta de delicadeza, mas apenas por termos sido todos nós um dia como Eros, olimpicamente picarescos, de uma inocência digna de todo respeito.
Texto que faz questionar a existência do ser polimorfo perverso freudiano por uma perspectiva romanesca distante de qualquer teoria, por isso mesmo transcendente e por isso mesmo mitológico e essencial.

Sejamos

as circunstâncias integradoras de um vazio sem margens
o gelo se derrete na tentativa de ser rio e fugir da nascente
não há como voltar ao seio das pedras desfeitas
em seixos grosseiros com arestas pontiagudas
fincadas nos estuários afluentes vindos do mistério
avolumar as variáveis na criação de redemoinhos
para só um braço ficar de fora e ser pego por outra mão.

melhor não entrar no rio em dia de chuva com enchente
represar é mais seguro, mesmo assim pode haver naufrágio
na canoa furada da vagina de alguma mulher – Iara!

mas dias de enchente são inevitáveis nublados e com sol
os corpos dos amantes atiram-se nas margens e limites
das curvas onde as mãos andam mais que os pés
porque não se tem os melhores prazeres da vida com
os pés no chão, mas é impossível ficar ao sabor das águas
sem pisar na terra em momento algum, sem sentir o peso
da gravidade que nos prende ao solo em segurança e queda...

somos o que possuímos, mas os bens escassos deixados
são as migalhas dos labores dos antepassados prolíficos
disputadas pelos tios-avós, primos e filhos dos filhos,
ter que ser é um conflito genérico, há medo do trabalho
sustentáculo contra tentáculos dos polvos familiares
pulsátiis como vasos vicariantes, afluentes alimentados
pelo leito do rio onde insistem em desembocar sugando
águas, dedões dos pés, falanges, falanginhas, falangetas,
cabelos onde agarrarem-se, carne para matar a fome,
sangue para transfusão mais de ser que ser o ser de não

estar fora do caneiro do rio e nem fora de si mesmo
com medo putativo das dores boas do enlace amoroso.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Um amor em sonhos

Em arte tens-me ao seio em ilusão,
ansioso, te possuo imaginário,
desenho-te ao fundo dum cenário,
no qual o amor-perfeito é sem tensão,

mas fere o teu colo arguido
no encaixe d’ambos sexos na cama,
senhor embora servo e tu mucama,
senhora mas humílima e eu querido.

Dois cegos que se tocam no espaço
dos corpos revirados no vazio
do aço em que se faz nossa vontade.

E o amor que no encontro agora faço,
contigo em meu colo cheio de brio,
penetra na lembrança e na saudade.