MAR IGNÓBIL

MAR IGNÓBIL
LIVRO LANÇADO EM 2010

sábado, 23 de outubro de 2010

O quê?

Canelas belas, sob redondas coxas,
ou pernas ternas para bom caminho,
em passos lassos, violetas roxas
alguém, mas quem? Levará ao ninho

onde ela esconde; mas esconde o quê?
Luz que seduz, sem por a mostra,
rio em mistério onde se abre ostra
d’água na anágua, porque é buquê

nascido e crescido (entre duas coxas),
redondas, redondas para bom caminho,
nos laços dos passos, das violetas roxas
sem ter por que quero com carinho,

com cuidado ao lado levá-la ao estuário
do rio, do rio, onde se abre a ostra
da luz que seduz, ao se por à mostra,
pérola que rola como seixo em rio.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Esperança

Enquanto houver lágrimas
nos olhos abusados da inocência,
nem tudo estará perdido.

domingo, 12 de setembro de 2010

Perdido

Desespero cobre a tua espera
Esfera que gira sem andar
No mesmo lugar, mesmos dilemas

Exorcizar demônios que adoçam desencontros
Modificar o ser em sofrimento
No momento é único caminho

E combalidos de tantos desacertos
Estendidos na febre que consome
A vida que unidos percorremos

Buscar espaço entre os espaços
Passo a passo com carinho
Hesitante caminho sem a certeza

Busco o tempo da delicadeza
Que perdido no passado construído
Doído de atitudes mal formadas

Alberto Daflon

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Ventania ou Canto do jovem suicida

Se acaso a ventania me quiser levar;
(me deixe ir

na manhã de inverno, na bruma da noite fria;

(me deixe ir...

meu corpo anda gelado como mar antártico

para ser tragado pela ventania; me deixe ir...

antes que a ventania traga novas caravelas;

( me deixe ir...

em válvulas de escape o navio fez água;

( me deixe ir...


amor! Ah! Não tragas mais as ondas do verão

teus braços na enseada não oferecem porto;

num trago de cigarro virei névoa fria; e os olhares

vis são como os punhais, que quebram todos vidros

das vãs escotilhas e rasgam anteparas de todos

( conveses.

se acaso a ventania me quiser levar, me deixe ir...


mesmo se a primavera revolver o sangue

em buganvílias hemorrágicas sobre os muros dos jardins,

a flor continuará a ser mera ferida.


no mar não há raízes, cabelos, cicatrizes nem as ilhas

que o oceano quis isolar dos homens e do mundo.

se acaso a ventania me quiser levar, me deixe ir


o outono está distante e é uma angra de montanhas

que demora e exige demais para quem deseja partir

agora, sozinho, sem levar ninguém a nenhum

( naufrágio.

se acaso a ventania me quiser levar, me deixe ir


nas quatro latitudes encontrarei jazigo, me deixe ir...


Em tempo: Sidney Mattos ( meu parceiro num samba e irmão-amigo), junto com Augusto Magalhães, falecido nos anos oitenta do século xx de morte natural, um dia fizeram a música que começava com o verso Se acaso a ventania me quiser levar..., letra e música se perderam no esquecimento...

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Pé na roça

______________________________________para Cantilde
Vi luz antes de agosto de 1954,
menino com pé na roça,
não fui menino de engenho,
fui um guri suburbano,
crescido no Rocha e na Tijuca;

- mas o avô fazendeiro,
trazia um passado distante
de nascido em 1870, e de
ser representante do velho
pensamento liberal republicano -;

roça e cidade eram meus lugares,
em mim os paralelepípedos
das ruas e as picadas dos matos
eram caminhos que me acompahavam,
como cheiro do curral e o mau
cheiro da merenda da escola;

Cantilde, a negra azeviche de coque,
cozinhava no fogão a lenha
as carnes de porco, gado ou galinha,
e a cocção era lenta como
nunca era rápido o almoço resultante:

as verduras e os legumes
vinham da horta quase à soleira da casa,
do chiqueiro tudo se aproveitava
do porco, e as banhas fritavam ovo.

a couve nas mãos de Cantilde
eram cortadas por micrótomo,
e os fios da verdura lembravam
amontoados de algas verdes,
suaves e tão macias de derreter
na saliva, sem o esforço dos dentes.

Meu avô morreu em 1964,
aos noventa e quatro anos,
quando contavam dois lustros
os tempos dos meus desenganos.

Cantilde também viveu muito,
fez tanto fubá com colher de pau,
tanto biscoito de polvilho,
deu tanta prova a moleque faminto,
que nas refeições a relembro
mexendo angu quentinho na panela,

sobre o qual meu coração se aquece,
alimentando a lembrança do tempo
feliz ao longo do casarão largo
da minha infância e fase pueril,

que passaram e sempre passarão como
continua a passar o longo curso daquele rio,
ao fundo do pomar, onde se erguiam
as palmeiras que viram meu pai crescer,
que eram quatro, hoje são só três,
porque uma caiu antes de um agosto,
mas não quero me lembrar de quando
Cantilde passou a cozinhar nas estrelas.

hoje já contam onze lustros o tempo
dos meus desenganos; sou feliz
porque contemplado por um sossego no peito,
sempre penso no futuro com um
olhar no passado, e se estou desenganado,
no desencanto encontro o canto
real e forte que embala minha lira.

sábado, 28 de agosto de 2010

Travessia

ao meu irmão Alberto Daflon,filho


Enchente pós-chuva, na pulsante e ávida enchente;
menino, sim, era menino, e quis a travessia.

O rio sem margens, que comia grama, era o rio
barrento da roça de caminho barrento,
onde queria entrar sem saber para ir onde.

Os pés do primo e do irmão – o rio lambia-lhes os pés –;
meus pés buscavam a margem submersa; em meus pés
passos, com água às canelas, continuavam passos.

Surdo aos gritos, de pare! Pare! Pare! Continuava surdo.

Cobra, o rio me hipnotizava, como à rã hipnotiza a cobra.
Redemoinho, a cobra se contraía no redemoinho.
Submerso, caíra enroscado junto à margem do rio submerso.

Corpo sem reação, decidida cobra me apertava o corpo.
Embora, no fundo, no fundo, o rio quisesse me levar embora,
cobra me queria morto, na fome da sua fome de cobra.

Desenroscado o braço, levantei-o do corpo franzino enroscado.
Pelo punho meu irmão arrancou-me do redemoinho.

Na enchente pós-chuva, na pulsante e ávida enchente.
Menino, sim, era menino; e ainda hoje é cedo para travessia.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Complexo de Atlas

Sísifo, ao deixar pedra rolar
para o mesmo ponto abaixo da montanha,
enganava a morte, e ao lar
volvia a recomeçar mesma sanha;
jamais punha a pedra sobre os ombros,
nem mesmo de seu peso reclamava,
para agüentar o mundo e seus desassombros
preferia mão livre para clava;
mas Atlas ao contrário suportava
nas costas todo peso deste mundo,
por ser gigante de uma força extraordinária.
Um dia, descansado, Sísifo lhe disse
que iria deixar pedra rolar
para lado diverso da montanha,
talvez mais belo quem sabe do que o da casa,
mas Atlas implorou não fizesse isso,
pois isso ia causar desequilíbrio
na ordem do planeta sob os seus ombros,
e o mundo cairia, viraria escombros;
mas Sísifo no olhar de Atlas viu engodo,
e súbito a pedra caiu ao outro lado,
para que, sem a sina, enfim o gigante
aceitasse seu mundo como acabado.
Sem mundo o gigante ficou transtornado,
sua ira foi imensa, mas estava só;
Sísifo fora embora mudara de casa,
mas perto estava Prometeu acorrentado;
que ao ver o abutre devorar seu fígado,
não parecia infeliz, nem resignado;
Atlas aproximou-se, ofereceu ajuda,
mas Prometeu não quis ser desacorrentado,
pois ao roubar o fogo tivera o castigo
de o mundo libertar de todo e qualquer jugo,
mesmo de todo seu peso ter sobre os ombros
de um gigante forte, porém muito burro.

domingo, 22 de agosto de 2010

Pára com essa mania!

Cessar mania
é como passar fome
sem emagrecer;

não posso parar
sem beber um uísque
para ter calma,

sou viciado
na droga da mania
mas fujo dela

só para fazer
tudo que faço, penso,
de bom e fértil;

mas essa mania
um dia ainda matará
quem a faz viva;

então cessará
na hora da passagem
mania de ser

maior que ela
a doce mania
que me faz viver.

sábado, 21 de agosto de 2010

OÁSIS

todo encantamento
é feitiço recorrente
de alvoradas puras

prólogos de ilusões
do amor inconsútil
posto qual miragem

causada pelas sedes
da dama inconstante
chamada de alegria

restrita a um momento
menor que a hilaridade
do ser feliz completo;

então desencantar-se
é tornar-se um poeta
pobre e sem metáfora

que baterá na porta
mantida entreaberta
somente a noite escura

do encantamento torpe
dos luxuriosos prazeres
que murcham após o gozo

como se fossem rosa
da roseira arrancada
para fugaz surpresa

de quem apaixonada
quer manter-se bem vívida
por estar enamorada

do rito e da passagem
que leva a encantamento
da miragem no oásis.

MAGMA, o primeiro livro de poesia erótica escrito por uma brasileira: OLGA SAVARY.

Biografo-me em teu corpo despindo os cascos
e as crinas de égua a me tornar doce,
Côncava, amêndoa, combustível para os vôos:
mel para as nossas asas, fel para o repouso.
Olga Savary

Em recente entrevista a revista Marie Claire - nº 233, de agosto de 2010, com Carolina Dieckmann, na capa; Olga Savary declarou que “Quando o poeta fala de erotismo, fala porque não teve na dose que precisava. É mais falta que excesso.”
Poemas eróticos de Olga Savary podem ser lidos em seu site http://www.palavrarte.com/equipe/equipe_osavary_poe1.htm; são poemas ousados, mas nunca descem a mediocridade do sexo explícito e da pornografia tão comuns em 99% dos escritores amadores que, pela falta do erotismo, desfiguram os escritos eróticos como se este pudessem, de per si, satisfazer seus instintos animalescos indignos de serem registrados mesmo nos bestiários da pós-modernidade sôfrega e sem caminho.
Não sei escrever poemas eróticos, mas os de Olga Savary possuem a ourivesaria essencial as obras de arte, tocam a alma e o soma, excitam mais o prazer estético que a libido, não incitam ao onanismo e nem por isso são menos intensos do que qualquer tentativa vã de corromper o erotismo. Não são para serem lidos em alcovas de doentes e nem necessitam de espaço reservado para maiores de dezoito anos, posto que são alta literatura, de feminilidade ímpar e pioneira, por terem sido desde sempre os primeiros a constituírem um livro de poesia erótica no Brasil.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

E quando anão cavalgar ornitorrinco

na catraca do estômago bola de pingue-pongue
matará albatroz, inocente onívoro, das ilhas
não mais isoladas pelo oceano
indicado para se jogar o lixo,
oceano Pacífico, Atlântico, Índico,
desarticulados do Ártico,
tentados a desarticular o Antártico,
que nunca terão a densa
pureza do Mar Morto.

catraca, catraca, catraca;
catraca, catraca, catraca.

que catacrese, que nada,
o peixe voador voa para
fugir do mar infectado pelo pus
do abscesso civilizatório.

a bióloga cata esferovites,
metais e peças de plástico
no bucho do albatroz onívoro;

ovíparo alimento das ratazanas,
em paz para comer os albatrozes,
na alva e nos crepúsculos e nas tardes
dos programas televisivos do National Geographic.
Inspiring people to care about the planet since 1888.

Hotel cinco estrelas

Um dia o playboy surgiu na nossa vida. Não tinha irmãos, mas tinha uma irmã. Éramos dispersos. Mas nos reunimos sob a liderança do alemão para decidirmos o que fazer com o intruso metido a besta que dera um cascudo num colega de classe franzino. Que estória é essa de chegar aqui com essa banca toda?!... Foi mal, agora eu deixo ele me dar um soco na cara. Reunimo-nos em volta e a vítima, hesitante em relação a dar o troco, resvalou um soco na bochecha do intruja. Quero paz e amizade. Está bem. Agora éramos cinco, nós quatro e o metido a besta. Morava no Leblon, viera morar no Rocha, bairro do subúrbio carioca, por causa de problemas financeiros da família. Prazer, Hans, disse o alemão. Sou o Luciano, disse o afro-descendente com sua voz de âncora de jornal de TV. Sou o Domingos, disse o filho do português dono de boteco. Sou o autor desta crônica caros leitores e não disse nada, embora descenda de lusitanos e suíços. Então Luís propôs nos tornamos irmãos. Ok, mano, disse o Hans. Mas você precisa consertar esta calça pescando siri para ir ao Leblon, isso parece mais uma bermuda. Meu pai tem uma confecção, vai por mim, sei o que é moda. Passamos a nos reunir, menos para estudar do que para conviver. O alemão morava no bairro de Santa Tereza e o playboy tinha sua própria turma no Leblon, mas então era um sem teto naquele lugar melhor do mundo. Subimos o morro de bonde, fizemos festas na casa de Seu Hans, pai do nosso amigo, músico violoncelista da Orquestra de Câmara da Sala Cecília Meirelles, criador de guppies, gostava de cruzar os peixes ornamentais, coisas de interesse por genética. Na casa do Seu Hans, vindo para o Brasil no intervalo entre Guerras Mundiais do Século XX havia um tanque com uma pirambóia, único peixe pulmonado do Brasil. Dois pezinhos, um de cada lado do corpo preto de chouriço. Uma boca banguela. Dois olhos oligofrênicos. Balançava o rabo no fundo do tanque e depois o aquietava para o limo cair encima, antes que dobrasse como uma colher para enfiar na boca e alimentar-se. Tinha também um cachorro africano com pele de porco, uns parcos cabelos ocres na cabeça e uma mansidão sem fim. Mas o pai do alemão adoeceu, começou a urinar pedras, a eliminar pedras através da pele. Nosso amigo disse que precisava ir embora de casa porque a barra estava pesada. Mas não tinha dinheiro para pagar a inscrição no Concurso para Sargento Especialista da Aeronáutica. Estávamos então no último ano do ginásio ou primeiro grau, como é dito agora. O playboy sugeriu fazermos uma vaquinha para pagar a inscrição. Fizemos. Vida que segue. Hoje o Hans é Sub-Oficial reformado da Força Aérea Brasileira. Luís conseguiu ir morar no Leblon porque herdou de um tio ex-pracinha um apartamento no bairro que ama. Tenho cinco irmãos, todos no Rio de Janeiro, mas quando vou à urbe da minha natalidade. Fico na casa do meu compadre. De todos mencionados nunca perdi o contato com o playboy, dono de uma vídeolocadora de vasto acervo Cult – em geral assim é chamada a cultura, hodiernamente – além dos filmes comerciais de boa locação. Quando morou em Salvador fui visitá-lo de navio como médico de bordo do Contratorpedeiro Mato Grosso. Morei em Vila Isabel e, regressado ao Rio de Janeiro, o mano tinha a chave de meu apartamento. Frequentava-o para namorar a Lea em tempos de dureza nos dias de minha ausência por motivo de viagens ou plantões. Quando serviu como controlador de voo na Base Aérea de Lagoa Santa, o alemão teve um sítio perto para plantar, conforme declarou, linguiça e macarrão. Como militar foi a única vez que exerceu atividade não remunerada extra-serviço na ativa. O negrão, hoje, é engenheiro e nos reencontrou pela internet. O filho do portuga é engenheiro naval. Ontem mesmo estive na casa do meu compadre playboy para festejar o aniversário de minha afilhada Laura. Aquele lar é o único local onde tenho um hotel cinco estrelas da amizade. Lanche na padaria e, mais importante que tudo, nas calçadas a vida animada da zona sul.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

MÃE

ao nutrir filho,
mãe é árvore que não
dá fruto verde.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Mar dizível

Se a quilha do navio deixar trilha, o mar é dizível
nas velas desfraldadas em tímpanos dos ventos,
ventanias sibilantes das alvas e crepúsculos ou tempestades,
(mesmo sob a hora perpendicular do sol),
quando os seres abissais refugiam-se em maiores profundezas.
E o espírito goliardesco dos marujos está atento aos riscos,
aos riscos que a quilha do navio abre no mar;
no mar que não quer a demanda do navio ao porto.
O mar que engole com suas línguas todos os segredos;
o mar que aprisiona as sereias em enseadas e pedras;
o mar dissimulado das calmarias e do tédio;
o mar que invade grutas onde há a solidão dos náufragos;
o mar da ilha de Tortuga mergulhada em sangue,
o mar das pilhagens de navios por piratas da Somália,
o mar onde as cicatrizes abertas pela quilha se fecham
na esteira de espuma da popa, onde não há lanternas,
mas há o convés mais largo,
não infenso a solidão dos marujos e ao desespero.
Local que só interessa ao astrolábio pela existência do leme,
quando o horizonte é redondo e não há terra à vista.
Quando no passadiço o timoneiro importa igual ao Comandante
e cada membro da tripulação é uma célula viva da nave de ferro.
De fato, sem o fiel da aguada não há água doce,
e a água do lastro não é potável para ser bebida.
Sem o Contramestre o Oficial não descansa e a maruja
dorme no posto, na hora errada, no mar errante dos naufrágios torpes,
mesmo antes de serem lançadas espias aos cabeços dos portos
para surtar o navio depois do aviso apitado da ramonagem,
que alegra as mulheres das urbes portuárias e as do cais do retorno,
antes que a caldeira se apague e o navio durma um sonho,
no sono dos marujos ratos de bordo e dos que baixam terra,
na hora em que a noite é lançada como tarrafa sobre o oceano.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Endereço certo

Às vezes o abismo ao avesso é visto após a queda
como montanha agreste, com floresta e alimária,
sem picadas ou caminhos que levem a endereço certo,
quem no mundo se pôs ao largo
por ser incapaz de um abraço;

ou ao limite de um muro cercado
com cerca elétrica para evitar o choque
do excesso libertário bebido como dogma
sem que o ser tenha um amálgama;

assim vive no zoológico até mesmo o rei leão
e outros felinos, que desde que haja carne
mostrarão pouco os caninos; exceto
se por preguiça insistirem no rugido;

abençoado é um lar, com janelas
abertas ao sol há alegria na casa,
é doce, doce, a morada; be well come to home;
gostará de estar em casa somente quem for bom homem.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Corpo desuniforme

Teu corpo é alostrófico,
gostaria alabastrino,
quem nasce aqui no trópico
engorda ou fica franzino;

mas não faço engorda imensa
na hora da segunda estrofe,
abaixo do crânio que pensa
cultivo alargado tórax;

mas a barriga afina
em verso hexa-silábico,
os lábios da menina
olho c’os olhos estrábicos.

Sois cabeça tronco e membro, poemeto;
nada sou sem teu sentimento forte;
sempre cumpro as juras que prometo,
a incoerência não ajuda a sorte.

No caminho sinuoso dessa estrada longa,
fui onde o acaso me quis levar de avião;
mas quem acreditar nessa farsa ou milonga
poderá bater com a cara lá no rés-do-chão.

Se o corpo
do poema é esquisito,
um copo é
pré-requisito.

Verás um monossílabo
de cinco sílabas
escandidas pelos lábios
de uma ladra;

ou fada se souber
a mágica do latrocínio
de ao oferecer a úbere
me tornar bem menos cínico;

pois peço sua atenção,
como pedinte a voyer,
que sente algum tesão
ao ler o poema que lê;

claro, apenas para numa fresta
olhar o poema acabado;
em ritmo de grande festa
rock'n'roll, samba e xaxado.

Balada a la bahiana

Salve, salve o tornozelo
que movimenta o pé,
se ele for contundido
não jogo como Pelé,
que se foi um grande craque,
hoje é marca de café.
Cafezinho amargoso
servido após canapé,
ainda bem nunca servido
lá no tempo do rapé.
Como morei na Bahia
ainda canto o afoxé,
um dia quase afoguei
na Lagoa do Abaeté,
e foi um Deus nos acuda
explicar para Maitê,
com ênfase de rima aguda
aonde eu fui me meter
pra chegar molhado em casa
com cara de muito axé!
Mas driblei minha mulher
com carinho e cafuné,
melhor ser homem do mundo
do que ser bicho-de-pé.
Que no solado da esposa
só adormece o blasé,
onde a mariposa voa
sempre há muito o que fazer;
faço amor com a patroa
porque sei andar com fé.

Adynaton

Tão fora de mim e de si
a ação já consumada
nega revisão de texto;
quem sabe dos não
poemas e da despoesia
são os irmãos Campos.
Pior que adágio musical
incapaz de acontecer
o poema se tornar poema
é o popular tautológico
que nunca diz algo adrede;
então caia sobre a folha
a bomba de mil megatons
na ante-véspera inadiável
de um silêncio absoluto
- para o osso esburgado
de que adianta o gesso?

O sabiá...

Fui pego de surpresa pelo amor,
ainda muito verde de ciúmes,
já sei que cada faca tem dois gumes,
desdenha de mulher traduz clamor.

Então andava triste e cabisbaixo,
tocava meu contrabaixo em langor,
roufenha era a música, sou baixo,
mas era longilíneo meu fragor.

Igor era alto, gordo e bem mais forte,
acreditei em ira em meu vigor,
jurei para contenda luta à morte,

Mas ela não era séria e eu não sabia,
tomei logo um direto bem nos cornos,
restou-me ouvir cantar o sabiá...***

Flor do cardo

Junho, julho, agosto, floresce o cardo,
com folhas bicolores brancas como leite
na página debaixo onde coagulado
lembrança traz de queijo e doce de leite,

E verdes na de cima, que emergem do talo,
que elevará flor amada por queijeiros,
na industria de usa-la por coagula-lo
(o leite) se arrancadas dos canteiros

Em sua forma de tubo e cor violácea,
com poderosa enzima sobre a massa láctea,
em queijo transformada para o palato.

Setembro, posto à mesa o queijo da Serra,
orgulho português, honra da lusa terra,
que degusto com vinho, taça junto ao prato.

domingo, 15 de agosto de 2010

Soneto pelo enlouquecimento

Sabes? Só sei de ti intrincados labirintos
de heras verdes amuradas e centrípetas,
por onde vagam muitos anjos e capetas
para rirem-se do ardor dos meus instintos
até que louco eu me perca em circunstâncias,
no descaminho mais tristonho da rotina,
qual alienado que sequer pensa ou atina
que o estugar passos aumenta as distâncias,
mas essa dor da tua ausência é precedente,
não some, não alivia e só tem lenitivo
quando sinto tua carne possuir minha alma.
Paixão de entrega máscula assim pungente,
só posso em lealdade a tudo que estivo,
mas força só adianta ao toque da tua palma.

sábado, 14 de agosto de 2010

Agripina

- Ser filho de Agripina não foi fácil,
envenenou marido, foi muito má.
Comigo se fez sexo, nunca foi dócil,
mãe, desde a apojadura, pior não há.

- Cometer parricídio, Nero não vi,
poupei-o de tamanha aleivosia.
Fui consultar vidente, logo ouvi:
seria imperador em apostasia.

- Eu jamais senti dó ou dei perdão,
contra mãe sentir ódio causa receios,
foi no ventre da besta a danação!...

- Enfia tua adaga centurião,
enfia a haste toda entre meus seios,
alimentei um monstro, enfia então...

mar ignóbil

o mar ignoto e ignóbil

invadiu as planícies e curvas

que bordam teus seios


os efluentes dos terminais,

o óleo dos barcos e navios

não eram apenas do viajor


nem do improvável porto

bafejado por brumas frias

ou hálito quente de verão;


mas impurezas são bem vindas,

amor não é depuração d’água

das ondas espumantes da saliva.

desconcentrações

numa osmose do alheio

a densidade da experiência

não se concentra no ser,


o sal do sangue precisa

do mesmo ser aberto para as veias

de cada universo,


ventosas não sugam

as substâncias vitais

mas caem de cansaço


ou pela dor da exaustão,

como moréias mortas

locupletas de sangue;


a inspiração ofegante

não substitui o lobo

pulmonar destruído pela ira.


o fato é que a boca

do trombone precisa do sopro

para ser grito ou música.
Buenos Aires

Rosita era Argentina e a flor do seibo
coloria os seus lábios de paixão,
escrevo sob a terra em meu caixão
romance que ainda não concebo

por ter me conduzido à situação
de morto em Buenos Aires por seu filho.
Viúva ela andava bem no trilho
do trem onde roubou meu coração

e a rodocrosita no pingente
caía entre suas mamas de cor âmbar.
Eu quis misturar tango com bom samba.

Carlito com revólver deu o tiro,
olhei-a preste ao último suspiro,
caída também morta em sua cama.
Nos umbrais da quimera

Nos umbrais da quimera me contive,
pois pássaro não entra em alçapão
atrás de um pedacinho de pão,
sem ter uma donzela no declive.

E a virgem estava lá a minha espera,
tão pura embora nua e bem tímida,
toquei-a com a mão toda tremida
e fiz da sua barriga uma esfera.

Barriga de lua grávida e púbere:
a tal da gravidez da adolescente,
que terminou em morte prematura.

A mãe que não foi mãe nem me recebe,
embora eu leve sempre um presente,
com minha mão de velho insegura.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

JUDÔ

Justo naquele dia começara o horário de verão, talvez por isso o atraso de Evaristo.Trabalhávamos no mesmo hospital há um ano, nossos filhos tinham a mesma idade.Por contingências profissionais mudara para Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, a fim de ficar perto do Hospital onde possuía cotas.Éramos sócios.

Adiantar uma hora do relógio e ainda aturar atraso é dose. Antes morava em Copacabana, ainda freqüentava o Leme Tênis Clube. O combinado era pegar uma piscina e depois almoçar por lá. Mas Evaristo só chegou depois das dez horas. Está tarde, disse, sem desculpar-se, Copa fica muito longe, que tal se formos para Barra de Guaratiba? Olhei para minha mulher. Ela estava de saco cheio. Está bem, vamos logo então. Pode ser no meu carro? Pode. Marieta sentou atrás com as crianças. Evaristo ligou o ar e pôs som na caixa. Relaxamos. O trânsito ajudou, chegamos rápido. Está vendo lá embaixo é a Prainha. Lugar lindo. Faixa estreita de areia entre dois rochedos. Escadaria para descer do bar até à praia. Bom serviço de garçom. Pedimos duas caipirinhas e patinhas de caranguejo. Marieta, coca light. Guaraná para as crianças. Fascinada pelo mar Julinha não me deixou beber a caipira inteira. Comi só duas patinhas.

Pai, vamos para praia? Já, já, espera um pouco. Comi mais uma patinha. Felipe não quis descer comigo, preferiu ficar com o pai. Evaristo se divorciara da mulher, o guri andava apegado. A Prainha é mar aberto. Apenas uns gatos pingados estavam na areia. Caminhei pela areia fofa. Senti piso duro e úmido sob meus pés. Hesitei em seguir em frente. O mar a uns dez metros. O mar sempre me intrigou, seja como metáfora do desejo seja pelas suas nuances de violência e cor. Juju agachara-se. Percebi a língua d´água agigantar-se a tempo de gritar, Ju corra para meu colo! Lutara judô pela equipe da faculdade nos jogos universitários, mas já não praticava há mais de 10 anos. Acolhi minha garota ao colo. Ela agarrou-se ao meu pescoço. Virei de costas e abri as pernas, com leve flexão dos joelhos. Os gatos pingados debandaram com medo de água fria. Marieta trocava olhar comigo. A língua d’água lambeu nossos corpos até o pescoço. Foi lá na frente e voltou tirando areia debaixo dos meus pés. Cavou um buraco. Saí do mar com areia até nos tornozelos. Fôramos salvos pela base do judô. Subi até o bar do rochedo, bebi o resto da caipirinha e disse Evaristo vamos para casa.

Historicidade na obra de Mario Vargas

O trabalho de pesquisa desenvolvido buscará estabelecer bases para a compreensão das relações entre literatura e história na obra do escritor peruano Mario Vargas Llosa, sem procurar analisar aspectos da rica narrativa da prosa vargas llosaiana. O estudo visa a destacar, além das paráfrases históricas que compõem os enredos dos romances, a importância dos personagens no que tange às suas participações no processo histórico, sejam eles protagonistas ou deuterogonistas e para atingir esse desiderato foi lida a maior parte da produção de Vargas Llosa como romancista, ou pelo menos os seus livros mais importantes. Ademais, não foi desconsiderada a importância do escritor no jornalismo e como crítico literário, com citações bibliográficas da sua produção na imprensa, mormente crônica, que corroboram e traduzem a importância e o relevo com que Vargas Lhosa concebe o tempo histórico.

SUMÁRIO
1) Introdução
2) Historicidade na obra de Mario Vargas Llosa
3) Conclusão

1)Introdução

O romance histórico nasceu da tradição da crônica de conquista e do exemplo europeu. Em fins do século XIX, tornasse mais interessado nos fatos políticos e sociais, convertendo-se em documento de testemunho ou participação.
Em literatura, há quatro modos de formação do enredo historiográfico: o romanesco, o trágico, o cômico e o satírico , pelos quais Vargas Llosa transitou com maestria.
No romance histórico a matéria do romancista é o tempo. Segundo Octávio Paz, confundidos presente e passado deslizam para uma cavidade oca que tritura: a história .Sem o conjunto de circunstâncias a que chamamos Grécia não existiriam nem a Ilíada nem a Odisséia; mas sem esses poemas tampouco teria existido a realidade histórica a que chamamos Grécia. Ainda segundo Paz:

A condição dual da palavra poética não é diversa da natureza do homem, ser temporal e relativo mas sempre lançado ao absoluto. Esse conflito cria a história. Dessa perspectiva o homem não é mero suceder, simples temporalidade. Se a essência da história consistisse apenas em um instante suceder o outro, um homem a outro, a mudança se resolveria em uniformidade e a história seria a natureza .

Vargas Llosa, amigo pessoal do escritor mexicano, tem clareza absoluta da importância do homem – ser humano – como ator da história, daí a importância conferida aos personagens, sejam protagonistas ou deuterogonistas, muitas vezes sua prosa assume, de fato, um caráter polissêmico.
Escritor e crítico da literatura do século XX, Vargas Llosa afirma que a literatura é:
...além de um dos mais enriquecedores afazeres do espírito, uma atividade insubstituível para a formação do cidadão numa sociedade moderna e democrática, de indivíduos livres, e que, por isso mesmo, deveria ser inculcada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas de educação como uma disciplina básica.
A literatura é um desses denominadores comuns da experiência humana, graças qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, não importa o quão distintas sejam suas ocupações e desígnios vitais, as geografias e as circunstâncias em que existam, e, inclusive os tempos históricos que determinam seus horizontes .

Entretanto, como a matéria do escritor á a ficção, o romance sempre parte do tempo psicológico, não do cronológico, sendo capaz de conferir a aparência de objetividade, conseguindo que a ficção se distancie e diferencie do real (obrigação de qualquer escritor que deseje viver por conta própria) .
Na verdade, cada escritor, no ato de realização da sua prosa, distancia-se da realidade para melhor percebê-la. Tornando-se assim um observador participante, no ato da criação literária.

2) Historicidade na obra de Mario Vargas Llosa

De tal monta é a historicidade na obra literária de Mario Vargas Llosa que, independente da ordem cronológica do lançamento de seus livros, podemos fazer breves resenhas de cada um pela representatividade que tenha referido a determinado período histórico, seja em relação ao Peru, país natal do escritor, ou a outros países onde a ocorrência de eventos históricos chamou-o a escrever romances de base factual dando vida literária aos personagens envolvidos.
Da mesma forma que José Lins do Rego deu vida aos personagens de Casa Grande & Senzala, obra maior de Gilberto Freyre, Vargas Llosa deu vida aos personagens de Os Sertões, livro reportagem de Euclides da Cunha, com outras características além das de reportagem que foge ao escopo dessa monografia comentar.
O distanciamento de Vargas Llosa da realidade peruana inclui um distanciamento geográfico, vejamos, como na condição de literato, ele demonstra isso no capítulo inicial de um dos seus livros:

“ Vim à Florença para esquecer-me um tempo do Peru e dos peruanos e eis que o malfadado país me veio ao encontro esta manhã da maneira mais inesperada. Havia visitado a reconstruída casa de Dante, a igrejinha de São Martinho Del Vescovo e a ruazinha onde a lenda diz que ele viu Beatriz pela primeira vez, quando na rua de Santa Margherita, uma vitrina me deteve de brusco: arcos, flechas, um remo lavrado, um cântaro com desenhos geométricos e um manequim embutido em uma cushina* de algodão silvestre. Mas foram três ou quatro fotografias que me devolveram, de chofre , o sabor da selva peruana. Os largos rios, as corpulentas árvores, as frágeis canoas, as fracas cabanas sobre palafitas e os viveiros de homens e mulheres seminus e lambuzados de tinta, contemplando-me fixamente de suas brilhantes cartolinas.”

O parágrafo inicial do livro acima é de um livro que trata da memória coletiva dos índios machiguengas da Amazônia peruana, que nos permite desde o início deduzir como é difícil sobre a memória de um povo para um escritor europeizado.
Mas disso não escapa nenhum intelectual do terceiro mundo. O que Vargas Llosa faz por meio de seus personagens, e identificando-se com eles, é mostrar que há uma relação inumerável desses indivíduos para melhorarem suas condições de vida, seja não se submetendo a regimes despóticos – falaremos ainda sobre isso – , seja procurando solução para as suas misérias, até mesmo com o uso consciente das circunstâncias históricas.
É o que podemos observar em seu livro mais polissêmico: A CASA VERDE, romance em que o autor ora põe o leitor entre os habitantes do subúrbio de Marigucheria, onde o vento do deserto faz chover areia todos os dias, ora em uma canoa, num igarapé, entre índios e aventureiros .
Em A CASA VERDE, pomos em relevo a personagem Bonifácia, uma ex-selvagem, servente de convento, expulsa dali por ajudar a fuga de duas meninas selvagens capturadas pelo Exército Peruano. Bonifácia, expulsa, termina por se casar com um Sargento, que reconhecia nela as virtudes para ser uma boa esposa. É assim que Bonifácia ascende na capilaridade social da condição de servente de convento par a de esposa de militar, unicamente com o uso dos parcos recursos pessoais que tem, o que confere humanidade e grandeza ao seu personagem: vencer adversidades históricas, algo que é tônica na prosa de Mario Vargas Llosa, principalmente no que tange a personagens que emergem da pobreza e da proximidade da natureza em estado bruto, caso de Bonifácia.
Mas essa temática da natureza e do homem primitivo ou do processo civilizatório em contraposição à natureza é mais aprofundada ainda no livro O PARAÍSO NA OUTRA ESQUINA , no qual Vargas Llosa apresenta o retrato pungente de duas figuras do passado: Flora Tristán e Paul Gauguin, avó e neto, a primeira com ancestralidades familiares no Peru; com cada um em seu momento procurando romper as amarras da sociedade; Flora com sua crença cega no socialismo utópico e Gauguin com a arte da pintura, ambos os personagens sendo empurrados para fins trágicos, apesar das grandezas de suas aspirações e mentes criativas.
Nesse romance, como tomada de posicionamento histórico, Vargas Llosa, narrador onipresente, chega a ser paternalista com os personagens, principalmente com Flora Tristán, que tem oportunidades de organizar uma vida “pequena burguesa” várias vezes em sua biografia, mas abre mão de tudo em função da luta pela igualdade entre os homens, num mundo que sequer precisaria de exércitos.
O romance acima comentado marca a transição do século IXX para o XX, trata de personagens nietzchineanos, Flora na onipotência cega da utopia de mudar o mundo, Gauguin na concupiscência sifilítica que o faz pintar seus últimos quadros com visão binocular (ou central), visto que as estruturas da retina responsáveis pela visão de campo haviam sido destruídas pela doença proteiniforme.
A obra de Vargas Llosa leva a refletir sobre a impossibilidade da existência da natureza estática, até mesmo a natureza humana, face ao progresso tecnológico. Gauguin morreu pobre, como Van Gogh, a leitura do romance biográfico escrito por Vargas Llosa, emociona e situa o leitor quanto às utopias do século XIX, muitas das quais permearam todo o século XX ( volta à natureza, socialismo e pansexualismo, caso de Guaguin); hoje em dia essas utopias ainda arrebatam muitos corações e mentes. A Igreja contribuiu para que Gauguin terminasse a vida quase como um mendigo. Mas numa sociedade em que os conservadores acusam a existência de uma ultraliberalidade, a expressão das condutas sexuais permeia a mídia. É interessante notar que Vargas Llosa chama a sífilis de doença impronunciável. De fato, até a descoberta da penicilina a sífilis era como a AIDS antes da oferta de medicamentos anti-retrovirais, que compõem o chamado coquetel. Uma doença impronunciável e até muito mal compreendida quanto aos meios de transmissão, chegando a ser chamada de peste moderna, é óbvio que o escritor quis que o leitor cotejasse essas duas nosologias ou morbidades, como preferirem.
Ultrapassadas as etapas relacionadas ao pêndulo entre história e natureza na obra de Vargas Llosa, podemos dizer que os romances mais densos em tempos históricos o escritor relegou ao século passado, na maioria das vezes sem usar as prerrogativas da sátira e do cômico ou mesmo da paródia. Isso devido, sem dúvida, à dramaticidade do processo histórico em toda a América Latina na centúria referenciada.
Posto o quê, leiamos abaixo um trecho do livro BATISMO DE FOGO (posteriormente, republicado no Brasil sob o título original A CIDADE E OS CÃES), para que possamos analisar:

“Nos domingos de manhã, depois do café, reza-se a missa. O capelão do colégio é um padre louro e jovial que faz sermões patrióticos exaltando a vida impoluta das grandes figuras nacionais, o seu amor a Deus e ao Peru, tecendo loas à disciplina e a ordem, e comparando os militares com os missionários, os heróis com os mártires, a Igreja com o Exército.Os alunos gostam do capelão porque sabem que é um verdadeiro macho: já o encontraram várias vezes , vestido a paisana, zanzando pelas ruas mais miseráveis de Callao, cheirando a álcool e com olhar lúbrico”.

A escolha do trecho acima se justifica porque o século XX foi dominado por guerras e estratégias diferentes das que começaram a se delinear a partir da queda do Muro de Berlim; a saber: duas guerras mundiais e a Guerra Fria, no curso das quais os militares, na América Latina, se outorgaram uma supervalorização política. Valorização essa que Vargas Llosa, em prol de forças armadas democráticas, criticou de forma acerba e coerente. Sempre em prol da verdadeira apuração dos fatos, como o fez em cinco romances: QUEM MATOU PALOMINO MOLERO ;CONVERSA NA CATEDRAL ; A FESTA DO BODE ; PANTALEÃO E AS VISITADORAS ; além do já citado BATISMO DE FOGO.
Em QUEM MATOU PALOMINO MOLERO, Vargas Llosa escreve um romance policial. O morto é um seresteiro que se alistou na Aeronáutica para ficar perto de sua amada, a filha do Coronel Mindreau, Comandante da Base Aérea. Palomino foi assassinado pelo Tenente Dufó, que pretendia casar-se com a moça, criada pelo pai viúvo e abusada por ele; não é apenas a crueldade com que Palomino é morto, que chega a chocar o mandante do crime, o Coronel, que admite que teria matado a vítima apenas com um tiro na nuca, sem ter empalado, cortado o corpo em tiras, eviscerado o testículo encontrado entre as pernas.
O inusitado é que quando o Tenente Silva e seu assistente o Soldado Lituma desvendam o crime, com o subseqüente suicídio do Coronel Mindreau, é que ninguém acredita na realidade dos fatos; inclusive que antes do suicídio o Coronel Mindreau matara a própria filha, que dera subsídios para o esclarecimento do assassinato, quando confessara que fugira com Palomino Molero e que fora resgatada pelo Tenente Dufó.
A população prefere crer que o crime fora causado por problemas de contrabando, caso de espionagem com mão do Equador e até coisa de veado. Fabulação do povo local com elementos constantes da história (versão inverídica?). Dom Jerônimo um deuterogonista de somenos importância até então, assume importância no romance, quer saber quanto os peixes graúdos pagaram para que fosse inventada a versão de que o Coronel se suicidara.
Crime elucidado os dois policiais estaduais são transferidos para localidades distantes, nas fronteiras.
Em o BATISMO DE FOGO (A CIDADE E OS CÃES), Chacal, um dos alunos mata outro aluno, o escravo, como era conhecido pejorativamente, porque era submetido a todos folguedos sádicos ( bullying). O assassinato ocorre durante um exercício de guerra, o aluno conhecido por Chacal, ao fim do romance, como demonstração inútil de hombridade, confessa o crime. Mas a direção da escola militar acolhe apenas a versão do acidente. Fica óbvia a intenção do escritor em denunciar a violência das relações humanas numa instituição formadora de falsos líderes – naquele momento em que a Guerra Fria propugnava sempre pela violência hierarquizada dentre das Forças Armadas Latino-americanas.
No veio romanesco da trama ocorre que o assassinato é um crime passional e que Ricardo Arana, o escravo, é morto pelo Chacal por que ambos disputavam a mesma namorada. Mas o Chacal é expulso do colégio militar, inclusive por brigas com o poeta, personagem com matizes autobiográficas do escritor, que o denuncia como assassino, que briga com o Chacal na mesma cela até ser massacrado, sem um grito, para que a contenda fique apenas entre os dois.
Em CONVERSA NA CATEDRAL e em A FESTA DO BODE, Vargas Llosa a corrupção e a violência avassaladoras das ditaduras de Ódria, no Peru, e de Trujillo, na República Dominicana.
Em CONVERSA NA CATEDRAL, o jornalista, personagem, Santiago Zavala dialoga com dois amigos: Ambrósio e Carlitos, numa mesa do bar A CATEDRAL, em Lima. O tempo da narrativa é o da época do ditador General Ódria, de 1948 a 1956. Filho de Dom Fermim, empresário que obtinha empreitadas para obras não licitadas com lisura pelo governo. Zavalita tem problemas de relacionamento com o pai, que por sua vez não compreende as razões que levam o filho à não querer escrever sobre política, preferindo escrever sobre esportes e ganhar mal.
Ambrósio – um dos homens de confiança do Ministro da Segurança, então trabalha num canil, para sacrificar cães sem dono, e recorda as baixezas de seu chefe. Carlitos é alcoólatra. Zavalita, na verdade, atua como observador não participante, papel de escritor. E Vargas Llosa mais uma vez demonstra o ceticismo em participar de certos processos políticos, mesmo como oposição, embora em sua biografia haja registro da candidatura à Presidência da República do Peru, quando chegou a ir ao segundo turno contra Alberto Fujimore.
Apesar de o próprio Vargas Llosa considerar CONVERSA NA CATEDRAL como sua obra maior, é em A FESTA DO BODE que consegue colocar um ditador como protagonista do romance: Rafael Leônidas Trujillo Molina – da República Dominicana, e dissecar a personalidade de um psicopata, sem psicologismos, mas deixando que o personagem se revele em todas as suas atitudes de frieza e maldade.
Os leitores hão de se lembrar de Idi Amim Dada ao lerem história romanceada de Trujillo.
Ditador capaz de fornicar com as mulheres de seus subalternos e acólitos. Como foi o caso de Urânia, filha do Senador cerebrozinho, uma das narradoras do livro, deflorada com o dedo pelo ditador impotente, após ter sido mandada pelo pai a uma festa com o ditador e ter tentado, inutilmente, por meio de um fellatio que o velho Trujillo tivesse uma ereção.
Quando Urânia, que nunca teve outro homem na vida além de Trujillo, volta à ilha onde jurara nunca mais colocar os pés, voltamos a 1961, quando a capital dominicana ainda se chamava Ciudad Trujillo. Ali um homem tiraniza três milhões de pessoas sem saber que se desenvolve uma maquiavélica trama de transição para a democracia.
Vargas Llosa, no romance em tela, dá voz a diversos personagens históricos: à esposa e aos irmãos e filho do ditador, a seus apadrinhados, aos homens que tramaram e executaram o assassinato do déspota e ao sossegado e hábil doutor Belagher – o homem da transição para a democracia, que, na ocasião, assumiu a Presidência da República Dominicana, fazendo ordens ao Banco Central para que pagasse montantes milionários aos Trujillo para que saíssem do país, mesmo porque se algo acontecesse a sua pessoa os marines americanos invadiriam a ilha, sob as ordens de Kennedy.
Em dois outros romances Vargas Llosa, ao narrar fatos verídicos, é compelido ao cômico e ao satírico e mesmo à paródia.
Em PANTALEÃO E AS VISITADORAS o escritor parodia sobre como o Exército Peruano criou um “Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteiras e Afins” com o fito de desafogar as ânsias sexuais ou ansiedades orgásticas das guarnições da Amazônia peruana.
Vejamos o que diz, no livro, o Coronel Tigre Collazoz, sobre as motivações para a criação do “Serviço de Visistadoras”:

_ Em poucas palavras, a tropa da selva está comendo as cholas. Há estupros a granel e os tribunais já nem conseguem julgar tanto safado. Toda a Amazônia está em alvoroço.

Oras, em clichês militares isso significa que houve naquele instante uma incapacidade institucional em atender à demanda de julgamentos na Justiça Militar, o que levou a uma determinação de necessidade para gerar um planejamento a fim de desreprimir essa demanda, que resultou no planejamento e na criação de um “Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteiras e Afins”.
Comparemos a situação com a de um país ocupado por Forças Armadas estrangeiras com a de um país assolado por uma ditadura militar; no primeiro caso há uma situação de guerra, com os costumeiros estupros causados pelos soldados do exercito invasor; no segundo caso também há uma situação de guerra, dentro do contexto da Guerra Fria, na qual se faz palco da “invasão” o próprio país natal dos soldados, na América Latina, no tempo das ditaduras militares, onde de fato esses estupros ocorreram e chegaram a proporções incontroláveis no Peru.No Brasil, José J. Veiga, no romance A SOMBRA DOS REIS BARBUDOS, fez uma belíssima alegoria do que é a invasão desses soldados contra o próprio povo. O livro é sombrio.
Em seu PANTALEÃO E AS VISITADORAS, Vargas Llosa, em paródia impagável, faz o relato da criação do ‘Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteiras e Afins”, da sua hipertrofia, por ser impossível manejar estatisticamente o controle da ansiedade orgástica da tropa, até o fechamento do Serviço e desbaratamento de toda a estrutura logística que fora montado, com a subseqüente ruína da carreira militar do Capitão Pantaleão Pantoja, na verdade um neurótico obsessivo, mais do que consciente da importância do cumprimento do dever e do que representaria para a sua carreira um fracasso na missão, por mais estranha que lhe parecesse.
Reparem que pela formação liberal do escritor, apesar das constantes denúncias de truculência e de abuso do poder (como é o caso do que ocorre em seu livro PANTALEÃO E AS VISITADORAS), não há nenhuma pugna em sua obra pela a implantação de regimes salvíficos como o socialismo. O escritor crê na democracia e que se um país não está bem é porque a democracia está sendo mal aplicada.
Em TIA JÚLIA E O ESCRIVINHADOR temos o mais rocambolesco romance de Vargas Llosa, mas o pano de fundo é a era do rádio no Peru, com as novelas e os costumes daquele tempo, vivido até mais tardiamente na América do Sul. È um romance de costumes, o mais autobiográfico do autor, o Varguita, ainda jovem em suas atividades literárias e tomadas de posicionamentos frente à vida. A obra de Vargas Llosa mostra assim um caleidoscópio de percepções do mundo, da história e da política, sendo o escritor capaz de assumir posições inclusive como cronista de jornal, frente a questões como o aborto, a eutanásia, os movimentos migratórios, voltaremos a esse ponto mais adiante.
Em nossa opinião, não só por ser um dos romances mais recentes de Vargas Llosa, o livro TRAVESSURAS DA MENINA MÁ(19)representa a síntese do pensamento liberal do escritor, no qual Otilita, nome real da menina má, nome que ela renega por reportá-la à infância pobre em subúrbio de Lima, é uma personagem semelhante a de Mildred do livro SERVIDÃO HUMANA de Sommerset Maughan, e tem sua confusa e interesseira trama amorosa com um tradutor profissional Ricardo Somocurcio.
A história de ambos começa nos anos 50 ( Vargas Llosa, na verdade, em quase todos os seus livros traça um vasto panorama histórico da segunda metade do século XX), em Lima. No bairro Miraflores, onde o jovem Ricardo se apaixona pela “misteriosa e estonteante chilena Lily”, que a realidade revela ser uma menina humilde de um subúrbio pobre. Ele a perde de vista, mas não consegue esquece-la.
Os dois personagens vêem seus caminhos cruzarem-se ao longo dos anos em cidades como Paris, Londres, Tóquio e Madri, à medida que esse amor cresce e se transforma – como a menina má que faz travessuras perversas, troca de nomes, aparece sem avisar, mas sempre perturba a vida pacata de Ricardo Somocurcio.
É contra o poder das circunstâncias que a menina má faz sua afirmação como personagem. É contra todas as peripécias dela que Ricardo afirma um amor de uma ética compassiva inigualável (posição do escritor frente aos que procuram a todo custo fugir da miséria e mesmo ter grandes ambições).
De fato, no início de sua trajetória a menina má está em Cuba, em treinamento para se tornar guerrilheira para depois voltar a sua terra natal – o Peru – aonde militaria pela implantação do socialismo, sem ter nenhuma formação ideológica compatível com a proposta, usando a possibilidade apenas para fugir da miséria no Peru. Caráter frívolo e oportunista, porém de uma coragem a toda prova e força de vontade irrefreável.
Em Cuba casa-se, sob nome falso, com um diplomata francês, que a leva de volta a Paris.
Não cabe aqui falar detalhadamente sobre essas peripécias, mas é justo o realce que a personagem faz das circunstâncias, até para fugir dos imbróglios conjugais que vai deixando pelo caminho. Sofregamente, sem dúvida, que por sua origem é acolhida carinhosamente por Vargas Llosa, em sua prosa romanesca ultraelaborada.





3)Conclusão

Sem tergiversar, porém por ser oportuno, findamos esse ensaio com comentários sobre a crônica OS PÉS DE FATAMAUTA , na qual não é mais o romancista que fala, mas o jornalista Vargas Llosa, que nos conta a história de Fatamauta Touray, natural da Gâmbia, que quiseram queimar viva em Baryoles, na Catalunha. Pés quebrados, juntos com costela e dentes, ao pular do sobrado onde se escondia junto com outros imigrantes.
Segundo Vargas Llosa o que Fatamauta fazia em Baryoles é fácil de saber:

Ela não estava ali veraneando, desfrutando das suaves brisas mediterrâneas, saboreando os belos manjares da comida catalã, nem praticando esportes estivais – repito que é a mais justa aspiração humana – tentando encher o estômago com o suor da fronte.

Vargas Llosa, escritor sem utopias, é um liberal e um humanista, favorável ao livre trânsito das pessoas entre os países. Optou por ser um cidadão do mundo, sem perder de vista nunca a aldeia onde nasceu, ele mesmo, guardadas as devidas proporções em relação a seus personagens fez seus movimentos migratórios e circula hoje livremente entre Lima, Londres, Paris e Madri. Foi fazendo o gancho da sua terra natal com o velho mundo, hoje chamado primeiro mundo, que construiu a maior parte da sua obra literária. A historicidade em sua prosa é a do movimento entre a América Latina e sua capital intelectual a França, mas não somente isso, talvez tenha sido o escritor e intelectual que mais devotou esforços criativos para que as realidades dos países do continente latino-americano fossem conhecidas; vejamos a publicação recente de seu DICIONÁRIO AMOROSO DA AMÉRICA LATINA , onde comenta os atrativos mais fortes de cada país – o Brasil aqui representado pelo carnaval carioca, pelo futebol e por Euclides da Cunha, Jorge Amado e Rubem Fonseca, entre outros que escreveram romances em paráfrases da história do Brasil e o Peru pela culinária e por extratos de partes seus escritos aqui, neste ensaio, representados também.
Reparem por fim que em seu dicionário Vargas Llosa cita com realce autores brasileiros que têm suas obras literárias muito ligadas à história do Brasil. Na certa essas preferências não são mera coincidência.




1) Textos teóricos
Josef, Bella Karacuchansky – História da Literatura hispano-Americana/ Bella Josef – Romance histórico . 3º ed. Rio de Janeiro: F.Alves; 1989
Lima, Luiz Costa – História.Ficção.Literatura/Luiz Costa Lima, pág. 18. São Paulo : Companhia das Letras. 2006
Paz, Octávio – Signos em rotação – Verso e Prosa.Editora Perspectiva. 1985. pág.20

2) Textos de Mario Vargas Llosa
Vargas Llosa, Mario – A verdade das mentiras/ Mario Vargas Llosa; Tradução Cordélia Magalhães; A literatura e a vida,– São Paulo: Arx, 2004. pág. 351
Vargas Llosa, Mario – A verdade das mentiras/ Mario Vargas Llosa; Tradução Cordélia Magalhães; A literatura e a vida– São Paulo: Arx, 2004. pág. 352
Vargas Llosa, Mario – Cartas a um jovem escritor: “Toda vida merece um livro”./Mario Vargas Llosa; tradução de Regina Lyra; Capítulo 6: O Tempo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
Vargas Llosa, Mario – O Falador/ Mario Vargas Llosa; tradução de Remy Gorga Filho; pág. 7, Rio de Janeiro. F. Alves, 1988
Vargas Llosa, Mario – A casa verde. Tradução de Remy Gorga Filho – F. Alves – 2º Edição, 1989
Vargas Llosa, Mario – O paraíso na outra esquina/ Mario Vargas Llosa. Tradução Waldir Dupont. 3º Edição – São Paulo. Arx – 2006.
Vargas Llosa, Mario – Batismo de fogo. Editora Nova Fronteira, 1963. Pág. 87
Vargas Llosa, Mario –Quem matou Palomino Molero/Mario Vargas Llosa. Editora ; tradução Wladir Dupont. São Paulo. Arx – 2003
Vargas Llosa, Mario –Conversa na Catedral/Mario Vargas Llosa. Editora ; tradução Wladir Dupont.São Paulo. Arx – 2004
Vargas Llosa, Mario –A festa do bode/Mario Vargas Llosa. Editora ; tradução Wladir Dupont.São Paulo. Mandarim– 2000
Vargas Llosa, Mario – Pantaleão e as visitadoras/ Mario Vargas Llosa; tradução de Ari Roitman, Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007
Vargas Llosa, Mario – Tia Julia e o escrevinhador/ Mario Vargas Llosa: tradução de Ari Roitmn e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007
Vargas Llosa, Mario – Travessuras da menina má / Mario Vargas Llosa; tradução de José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006
Vargas Llosa, Mario – A Linguagem da Paixão. Mario Vargas Llosa; tradução de Wladir Dupont. São Paulo: Arx, 2007
Vargas Llosa, Mario – Dicionário Amoroso da América Latina. Ediouro – 2007.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

pensamentos esparsos

o amor transparente é invisível

dar tempo ao tempo é oferecer esmola para rico

no vazio sem margens há descoberta do espaço

sombra boa depende da existência da luz

a prata derretida da Lua ainda é poesia?

no naufrágio da vida as válvulas de escape sempre fazem água

o vício nasce da vontade

em princípio mulher tem que ter finalidade

a eternidade começa depois da morte

o passado seguiu futuro próprio

o presente não deve ser embrulhado

não se tem os melhores prazeres da vida com os pés no chão

é melhor organizar a bagunça que estabelecer a ordem

uma sombra boa só desaparece quando a luz se apaga

a matemática da química é a tática da força anímica

os escorpiões são como samurais

escorpiões cometem harakiri

a vida é uma casa de tolerância nos dois sentidos da palavra

o amor é uma paixão abnegada

o deprimido é um bicho preguiça

um currículo de látex mesmo promíscuo evita a AIDS

só o sol pode esperar tranquilo o entardecer

PENSATEMPO

o que de fato importa

é a vida que se leva,

seja banhada em luz

ou coberta pela treva;


há quem goste mais do dia,

outro do hábito noturno,

importa é quem não adia

o que tem de acontecer;


vigília em ânsia ou calma

há mesmo em sono profundo,

cria mais quem possuir

um coração vagabundo;


riqueza hoje é ter tempo

sem preocupar-se com nada,

viver é um passatempo

quando não há omissão;


trabalho é apenas meio

de fim bem justificado,

a viúva tem um seio

e do outro lado tem outro;


importa é compartilhar

o que há de verdadeiro,

pois o espeto é de pau

só na casa do ferreiro;


e o erro mais aproxima

quem tem tempo para errar,

viva o errante vagabundo

que está na esquina próxima;


mas se o tempo for o grão

precioso do momento,

mesmo que seja escasso

irei jogá-lo ao vento;


o tempo é um passatempo,

pense-o em como o gastar,

saciedade há na vida

somente se a vida bastar.

sábado, 19 de junho de 2010

Medo

A eternidade é vida atemporal
Derrama-se sobre o nosso mundo
Identifica-se com a Divindade
Vai além do que pensamos

A inocência do Jardim do Edem
Desconhece tempo e os opostos
É o berço da consciência
O início das grandes transformações

O medo é a primeira experiência
Reconhecer que ainda estamos sós
Nascer e encontrar a luz
Luz dos pares e opostos

A forma de experimentar o mundo
transcende o que enforma
Sufoca-nos dentro do espaço
E é isso que todos querem

Alberto Daflon

Amnésia

Gosto do vento aos meus pés
nas nuvens das areias do tempo,
e se não deixo pegadas
caminho sobre o firmamento;
constantemente passo-me a limpo
no limbo,
não quero ser apenas um ímpio.
Creio apenas no amor constante
no espaço,
tudo que for demais eu esqueço.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

ORDEM NA FILA

D. Lia trabalhava no Posto dos Correios da Praça Sãens Pena ao fim dos anos setenta do século XX, a semana antecedia o Natal e o movimento de cartas era imenso. Hoje, com o advento do e-mail, isso não acontece mais. Cartas de amor também são menos escritas, as epístolas caíram quase em desuso. Doações para entidades filantrópicas podem ser feitas em terminais eletrônicos de bancos. O General do Exército Stanislaw Balner estava de férias, e, pela primeira vez depois de muitos anos, numa fila para postar uma quantia para um leprosário em Minas Gerais. Até hoje, depois apenas da Índia, o Brasil é o pais onde há maior taxa de incidência de hanseníase. À época chamada de lepra mesmo, doença mutiladora e sem cura, de evolução lenta. Atualmente, já existem remédios adequados para o tratamento da doença em suas fases iniciais, se descoberta antes de provocar sequelas. Voltemos ao General. Chegara enfim a hora de postar a sua doação. Ao pegar a carta, D. Lia observou que ainda estava sem selo. Educadamente, comunicou que a fila para pôr selo na carta era outra, e que o General entrara na fila errada. O militar reclamou, disse estar na fila quase uma hora, que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos estava uma bagunça. Não parava de falar, muito alterado comunicou que estava fazendo uma doação, seu tempo valia ouro, et cetera. A funcionária ouviu-o, calmamente respondeu que se o homem desejava fazer uma caridade seu maior valor talvez estivesse no esforço que fazia para exercitá-la do que no simples valor a remeter. A autoridade foi para outra fila para selar a carta. Na volta, não quis usar da prerrogativa de ser atendido logo, sem entrar na fila outra vez.
Ao ser atendido novamente, pediu para beijar a mão de D. Lia, falou-lhe sobre seu posto na hierarquia militar, que estava acostumado a dar ordens, mandar que mensageiros pagassem suas contas e resolvessem seus problemas administrativos pessoais de rua. Enfim, agradeceu-lhe pela lição de humildade.
Certas estórias de minha mãe sempre tem o dom de comover.

Os hippies em Guarapari – Três praias: 1971.

Na Tijuca, Rua José Higino, perto da perpendicular Aníbal Moreira, havia nos anos sessenta e setenta a turma da esquina, um bando de cabeludos com idades variantes de 15 aos 28, 30 anos no máximo. Eu tinha apenas 17 anos quando pus o pé na estrada. Sou aquariano, nasci no verão. Festejei muitos aniversários em dias de folia momesca. Em dezembro de 1970, os jornais noticiaram que haveria, antes do carnaval, o Festival Hippie de Guarapari, em Três Praias, hoje uma reserva florestal a beira-mar no Estado do Espírito Santo. Vou nessa, pensei. Pedi a meus pais o dinheiro para a passagem. Só vai se outros amigos seus forem juntos, disseram eles. Oquei. Perguntei se o Ricardo estava a fim de ir, Sim. Perguntei se o Guilherme queria, Sim. Compraríamos uma barraca, alguns mantimentos. A propaganda do evento rezava que haveria água potável para todos, banheiros, como se a quase virgem Três praias fosse um camping. Para quem não sabe, nas orlas das praias de Vitória, cidade do meu domicílio, há muitos hippies ainda hoje, com artesanatos na calçada postos à venda sobre uma manta de couro. O Festival Hippie de Guarapari foi, guardadas as devidas proporções, o Woodstock a brasileira.
Ricardo, hoje engenheiro, contraiu um apelido que nunca mais saiu da sua pele. Um dia, junto com uns cinco da esquina, perto da Igreja da Candelária, na Praça Pio X, ele perguntou - Que Praça PIOX é esta?
O apelido pegou tanto que até seu pai, da janela do quarto andar do prédio do Edifício Karmiol, chamava-o pelo vulgo: PIOX!...PIOX!...PIOX!... Parecia mais um pássaro da idade da pedra, um pterodáctilo, logo apelidado de TURU, ele gritava de sua janela: PIOX!...PIOX!...PIOX!...E a turma da esquina berrava de volta: TURU!...TURU!...TURU!...
Achávamos que TURU não ia deixar o PIOX ir, mas ele deixou; compramos a barraca e os gêneros tipo feijoada enlatada, macarrão, lingüiça e outras conservas, inclusive picles. Chamei uma prima que estava noiva, com o namorado na Europa e Laura chamou Virna, sua prima e em segundo grau também minha.
Exceto por um lupanar em Porto Novo do Cunha, cidade mineira as margens do rio Paraíba do Sul, aonde tive minha primeira experiência sexual mal sucedida, era um adolescente com poucos abraços e beijos em minha incipiente carreira de Don Juan. Viajei com Virna ao meu lado, e na noite de viagem ficamos abraçadinhos, mas quando chegamos ao local do festival ela tomou seu rumo e sumiu do mapa. Jamais esqueci sua blusa de seda, sem sutiã com seios redondinhos e mamilo a quase rasgar a seda.
Levamos uma garrafa de rum, de tóxicos nada sabíamos. Logo no terceiro dia Virna melou a barraca com um leite condensado que derramou dentro dela. Saúvas fizeram uma festa. Dormimos ao relento por uma noite, após uma faxina com água do mar. Sim, nada do que a imprensa propagandiara correspondia à realidade. Ficamos seis dias tomando banho de mar. Laura e Virna sumiram. Só as vimos pegando carona de volta num carro com dois marmanjos.
A bandeira do acampamento dos hippies tinha duas flâmulas: uma calcinha e uma cueca, atadas a um arbusto desfolhado no meio do acampamento, entre as barracas. Bahiano, um dos hippies toda manhã recolhia uma grana para ir comprar o pão na cidade, tinha só quatro dedos numa das mãos, como o Lula, nosso Presidente. Fizemos amizade com ele e com um cara muito especial – o Rômulo.
No dia em que dormimos fora da barraca por causa das formigas, Guilherme dormiu com a cabeça voltada para a fogueira, como não existia água potável fizéramos numa trempe improvisada a macarronada com água do mar. Acordou pondo os bofes para fora, eu e PIOX tivemos que leva-lo a uma clínica em Guarapari, onde fez hidratação venosa. Tivera uma intermação. O custo do tratamento esvaiu quase todos os nossos recursos, mesmo após difícil negociação por abatimento. Não poderíamos gastar mais nada. Os mantimentos estavam perto do fim.
Perdemos assim a oportunidade de pagar os ingressos para entrar no festival, ficamos ouvindo do lado de fora, certo momento eu e Guilherme voltamos para a barraca com uma hóspede.
A droga que rolava era a maconha. Bebemos nosso rum, Rômulo tocava violão e logo duas mineiras que tinham casa perto da área se encantaram com o rapaz de 19 anos e extremamente sensitivo em relação à natureza. Acho que as duas se apaixonaram por Rômulo, cumularam-no de atenções, e na carona do charme do nosso novo amigo fomos convidados para ir tomar banho e almoçar na casa das mineiras. Como fomos bem recebidos! Que Hospitalidade a mineira! Comemos até forrar a tripa.
Sobrara nos nossos mantimentos uma lata de azeite, uma de goiabada e um toddy. No dia seguinte fomos para a estrada. O Espírito Santo tem nas marmorarias e pedras em geral uma grande fonte de renda, exporta para o estrangeiro e vende a bom preço para a construção civil.
Pegamos carona num caminhão que tinha uma enorme pedra mármore ao centro da carroceria, nós (eu, PIOX, Guilherme e Rômulo) e uma cambada de hippies. De repente começou a rolar um baseado para todo mundo fumar, peguei a bagana e nem botei nos lábios, estava toda babada e sentia medo do que pudesse vir a sentir se fumasse.
Dormimos num posto de gasolina, precisávamos chegar até Campos dos Goitacazes, onde teríamos ainda o dinheiro para pagar a passagem até Niterói, domicílio de Rômulo. Lá ele disse que seus pais dariam dinheiro para a gente chegar ao Rio de Janeiro. No posto, dormi no chão e a lata de azeite me serviu de travesseiro.
Conseguimos a carona até Campos, pegamos o ônibus, tomamos novo banho na casa de Rômulo e fomos servidos com um lauto almoço com arroz, feijão, carne assada, batatas, água e refrigerantes.
Bahiano sem rumo na vida veio conosco.
Com o dinheiro da passagem nós (eu, PIOX, Guilherme e Bahiano) chegamos à Tijuca perto da meia noite. Não quis acordar meus pais, morava no apartamento 101 do Edifício Karmiol, escalamos a varanda sem grades e dormimos nela na noite de verão.
No dia seguinte, batemos na porta da varanda cedo, as vozes conhecidas acalmaram minha mãe. Era domingo. Fui à padaria comprar mais pão, presunto, queijo, leite. Os três e minha família ficaram juntos até o almoço.
Bahiano pegou sua mochila e nunca mais o vi.
PIOX e Guilherme foram para suas casas e são meus amigos até hoje.
Quando minha calça Lee foi lavada, ficou toda esfiapada nos fundilhos e nos joelhos, depois vi calças semelhantes serem vendidas naquele mal estado em butiques e lojas.
Três Praias se chama Três Praias por que tem duas pedras que adentram o mar ao feitio de piers, que dividem a praia em três partes. Um lugar inesquecível.

Curto-circuito

Se tu és Pandora
sou Sir Galaaz.

Se és apenas medo
eu sou claridade.

Se és uma égua
então serei trégua.

Se és uma boba
sou o teu clown.

Se és um penso
sou tua ferida.

Se és uma fivela
sou o teu cinto.

Se és a asma
sou o oxigênio

Se fores moeda
eu sou de graça.

Se fores saia
serei o vento.

Se fores doença
serei paliativo.

Se fores pé
serei o bicho.

Se fores estreita
serei heurístico.

Se fores amor
estreito ao corpo.

Se és puríssima
sou um gigolô.

Se fores folha
então sou poeta.

Se fores tempo
és a eternidade.

ELOGIO DA MADASTRA – MITOLOGIA, HUMOR E EROTISMO NUM ROMANCE DE MARIO VARGAS LLOSA.

Prolífico como romancista, o escritor peruano Vargas Llosa nunca se repete, mesmo quando coloca sua pena num mesmo viés literário. Num tempo de ambições de ultra contemporaneidade, negação da força do mito em prol duma suposta originalidade, em seu romance Elogio da Madrasta, é Eros, em sua plena imaturidade, antes do encontro com Psiquê, na figura do menino Fonchito, um pré-púbere, o principal personagem. Traquina como Huckleberry Finn, toda sua astúcia consequentemente inconsequente, feita para divertir o leitor, volta-se para o poder da sedução de Eros, de uma inocência terrível, sem culpa, como é o sentimento do amor pueril sem freios, por ser ainda paixão sem medida – amor em semente, desejo alienado dos sofrimentos que pode causar, dos dramas, das relações humanas como são, ou como foram humanizadas à revelia dos instintos e espontaneidades do ser, antes que as sementes do bem e do mal fossem plantadas nos corações e mentes.
Personagem enigma?
Vargas Llosa nos remete a uma condição de leitor em puro prazer da leitura, provoca uma empatia com o protagonista, uma compaixão pelos deuterogonistas, seu pai Dom Rigoberto, sua madrasta, a criada que tudo percebe de sua posição servil; criada que é o único liame crítico mantido pelo autor com o mundo real e suas regras de interditos; incitando em quem lê o sentimento de cumplicidade, de ser dominado pela leitura, de manter em segredo a intimidade daquela família e os rumos que as relações interpessoais tomam sob o domínio de Eros.
Força da mitologia num romance de renovação literária, auto-compaixão, servilismos dos sentimentos erógenos mais puros ao poder de Eros, retorno a dizer, em sua fase mais pueril e encantadora.
Livro essencial para os céticos, para os que em detrimento do interesse da cultura clássica se auto-denominam pós-modernos, pós - tudo; mas que são apenas pós-apocalípticos, por terem destruído a base cultural onde mesmo os mais inovadores escribas vão beber na fonte.
Romance de redenção do mito. Mais poderoso que o Caim de José Saramago e o de Márcia Denser, lidos um após o outro e casados um com o outro numa perspectiva intertextual.
Livro que redime o pré-púbere de todas as culpas incestuosas ou auto-destrutivas. Livro para ser discutido por pedagogos e psicólogos; psiquiatras infantis que medicam crianças hiperativas, desconsiderando suas pulsões da libido ainda em estado pré-consciente, sem formações reativas, sãs, em estado de diamante bruto; não por sua falta de delicadeza, mas apenas por termos sido todos nós um dia como Eros, olimpicamente picarescos, de uma inocência digna de todo respeito.
Texto que faz questionar a existência do ser polimorfo perverso freudiano por uma perspectiva romanesca distante de qualquer teoria, por isso mesmo transcendente e por isso mesmo mitológico e essencial.

Sejamos

as circunstâncias integradoras de um vazio sem margens
o gelo se derrete na tentativa de ser rio e fugir da nascente
não há como voltar ao seio das pedras desfeitas
em seixos grosseiros com arestas pontiagudas
fincadas nos estuários afluentes vindos do mistério
avolumar as variáveis na criação de redemoinhos
para só um braço ficar de fora e ser pego por outra mão.

melhor não entrar no rio em dia de chuva com enchente
represar é mais seguro, mesmo assim pode haver naufrágio
na canoa furada da vagina de alguma mulher – Iara!

mas dias de enchente são inevitáveis nublados e com sol
os corpos dos amantes atiram-se nas margens e limites
das curvas onde as mãos andam mais que os pés
porque não se tem os melhores prazeres da vida com
os pés no chão, mas é impossível ficar ao sabor das águas
sem pisar na terra em momento algum, sem sentir o peso
da gravidade que nos prende ao solo em segurança e queda...

somos o que possuímos, mas os bens escassos deixados
são as migalhas dos labores dos antepassados prolíficos
disputadas pelos tios-avós, primos e filhos dos filhos,
ter que ser é um conflito genérico, há medo do trabalho
sustentáculo contra tentáculos dos polvos familiares
pulsátiis como vasos vicariantes, afluentes alimentados
pelo leito do rio onde insistem em desembocar sugando
águas, dedões dos pés, falanges, falanginhas, falangetas,
cabelos onde agarrarem-se, carne para matar a fome,
sangue para transfusão mais de ser que ser o ser de não

estar fora do caneiro do rio e nem fora de si mesmo
com medo putativo das dores boas do enlace amoroso.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Um amor em sonhos

Em arte tens-me ao seio em ilusão,
ansioso, te possuo imaginário,
desenho-te ao fundo dum cenário,
no qual o amor-perfeito é sem tensão,

mas fere o teu colo arguido
no encaixe d’ambos sexos na cama,
senhor embora servo e tu mucama,
senhora mas humílima e eu querido.

Dois cegos que se tocam no espaço
dos corpos revirados no vazio
do aço em que se faz nossa vontade.

E o amor que no encontro agora faço,
contigo em meu colo cheio de brio,
penetra na lembrança e na saudade.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

A vida da pedra

Era uma vez uma pedra gigantesca que do alto da montanha observava o mundo ao seu redor. A pedra residia incrustada na montanha há sete mil e oitocentos metros de altura. De cor diferente da montanha, exibia um tom puxado para o marrom com veios brancos e com várias pontas que variavam de tamanho e formato, lembrando um imenso pacote mal embrulhado e amarrado com barbante. Estava ali talvez, desde o início dos tempos, sem idade ou mesmo período geológico. Como saber? Naquela imensidão, no silêncio, e tendo somente como testemunha o céu, as nuvens e o frio intenso, o porquê daquela magnífica rocha que se destacava na montanha de cor negra.
Séculos e séculos foram observados atentamente pela majestosa pedra. Viu o azul mais intenso do céu e a noite mais estrelada; sentiu o frio mais cortante que existe e se aqueceu com os primeiros raios de sol. Observou longamente ao contorno das montanhas, uma após outra durante um tempo infindável, as viu mudarem de forma, desaparecerem e surgirem mais adiante, às vezes cobertas de neve e outras mostrando seus dorsos terrenos, exibindo o renovar da natureza intocável.
Quantas belezas, mudanças e sabedorias a pedra pode assistir? Quanto tempo para presenciar tamanha força e graça? Estas respostas não estão à disposição de ninguém, somente a pedra pode responder.
Era verão e a neve derretia, formando pequenos riscos sobre a pedra e tornando suas protuberâncias cobertas de gelo transparentes, formadoras de pequenos arco-íris que enfeitavam magnificamente o lugar.
Todo o verão isto acontecia e ninguém podia imaginar que após esta infinidade de tempo algo poderia mudar naquele cenário. A água escorrendo século após século, marcando a pedra de forma aleatória, construía um sulco profundo em sua base junto à montanha. Não precisou de mais três séculos para que numa avalanche a pedra se soltasse e rolasse dois mil e trezentos metros montanha abaixo, só parando em uma fenda de gelo que amortecera sua queda.
Nesta vertiginosa queda seu tamanho e formato modificaram-se bastante, formaram-se outras protuberâncias, algumas reentrâncias e caprichosamente um furo em forma de arco alongado que atravessava sua superfície superior. Seu formato não lembrava mais um quadrado, mais sim algo mais parecido com um ovo, Longo no seu diâmetro maior e achatado no diâmetro menor. E ali ficou parada, inerte, a espera do que pudesse vir a acontecer.
Os ventos que ali castigavam o local eram intensos, ora velozes, ora lentos e frios ou de forma turbilhonar. As chuvas eram gélidas, e às vezes carregadas de granito outras vezes com muita neve e vento. Toda esta exuberante força ao passar pela pedra entoava uma canção. Quando ocorria somente o vento, parecia uma orquestra de violinos; o vento e a chuva já introduziam chocalhos e fagotes; o vento turbilhonar, ao passar pelo orifício da pedra chamava as flautas: a chuva de granito os tambores. Que linda sinfonia! Que novamente era escrita a cada pequeno e milimétrico movimento da pedra empurrada pelo o vento.
Muitas verdadeiras obras de arte foram escritas e executadas por milhares de anos naquele lugar sem que ninguém pudesse ouvir. Somente a pedra, autora e performática ficariam sabendo do ocorrido.
Novamente o destino quis interferir e mudar toda a sua trajetória. O derretimento da geleira fez a pedra rolar montanha abaixo por cerca de mais três mil metros, fazendo que novas modificações em sua anatomia e tamanho fossem processadas. Agora ela já perdera a exuberância do seu tamanho, havia poucas protuberâncias, decepadas pelo rolar montanha abaixo, seu furo já não existia e sua cor ficou mais forte, principalmente próximo aos veios brancos que jamais perdera. O local onde agora residia era muito mais quente e em certos períodos a neve desaparecia para surgir o terreno coberto por grama verde que alimentava animais de porte enorme, com chifres e corpos coberto de espesso pelo.
E mais uma vez a pedra ali ficou outra eternidade. Testemunhou a evolução de varias espécies, viu desaparecerem outras tantas, e neste período, século após século modificou-se muito pouco, perdendo seu formato de ovo e tornando-se mais redonda. Fato este que a fez novamente rolar pela montanha sofrendo encontrões, perdendo pedaços e ficando cada vez mais redonda. Desta vez a pedra chegou a um rio e descansou cem metros após sua nascente.
Agora, sua maior função era abrigar ovas de peixes que, todos os anos, ali chegavam para desovarem e morrem. Eram peixes lindíssimos, de cor avermelhada, que exaustos após a longa viagem de volta ao local de nascimento, reiniciavam um novo ciclo de vida, sem deixar também, no fim de suas vidas, alimentarem uma infinidade de outras espécies, como os ursos pardos, aves e até outros peixes. Mas as ovas que a pedra escondia geralmente estavam bem protegidas. E por milhares de anos ali ela ficou, libertando toda primavera, um número incontável de alevinos que rapidamente seguiam para o mar em busca de seus destinos.
A correnteza do rio a cada século aumentava sua força, principalmente durante o verão e lapidava a forma da pedra e a deslocava milimetricamente, fazendo em certo momento um longo deslocar, rio abaixo, da nossa viajante. Mais uma vez em movimento, atravessou quilômetros de distância, ora lentamente, ora velozmente; às vezes em pequenos saltos e outras pulando de magníficas cachoeiras.
No fim de mais esta viagem, na foz do rio, voltou a descansar, próximo à margem, com milhares de outras pedras, todas de tamanhos parecidos, arredondadas e lisas. Mas ela ainda se destacava, não mais pelo seu tamanho, mas sim pela sua cor e por seus veios brancos, que, como sempre, conferiam-lhe uma beleza diferenciada.
Certo dia, um homem que por ali passava observou-a, distinguiu-a das outras, segurou-a na palma da mão e admirou sua inconfundível beleza. Colocou-a no bolso e caminhou para fora do rio, mas não aquentou o peso de tamanha responsabili-dade, algo o incomodava, parecia que estava cometendo um crime. Voltou ao rio e deixou a pedra no mesmo lugar onde a encontrara.
E a pedra seguiu sua vida.
Alberto Daflon

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Paixão

De Romeu por Julieta
Um vício dominador
O olhar fixo do marujo
Na Braga da amarra
Do avarento às moedas
O objeto da paixão
A emoção com intensidade
Sobrepondo-se a lucidez
E distorcendo a razão
O que sinto por você
Eu chamo de paixão

Alberto Daflon

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Dor revisitada

Foi uma cara de gárgula,
máscara sobre tecido,
tenso da face esgarçada,
que atirei contra tudo.
Infenso a qualquer sorriso
sentia dor refratária,
de boticão sobre siso;
como se fosse um pendor
ter sangue sempre em fervura
tentando abrir a boca,
por meio de queimadura
mesmo que ficasse oca
com a palavra em clausura
e sem língua que a falasse,
esturricada à nervura
por baixo calão sem classe.
Tinha cabeça em masmorra,
como pedra contorcida,
mas antes que o sangue escorra,
desejo falar da vida.
Embaixo daquela gárgula,
tinha cara barbeada,
pêlos na pia ensebada,
e no espelho um canalha.
Então a dor era um vício
de firmeza escarmentada,
quase virara um ofício
para varar madrugada.
Capaz de moer a carne,
como um câncer mói textura,
e a moenda mói a cana
para virar rapadura.
Agora estou no bagaço,
como disforme emplastro,
meu sangue deixa um rastro
que sigo como a um regaço
no sentido da nascente.
Mas caio em queda livre
em funduras de calibre,
mas nos braços de ninguém.
Dói nos lábios e entranhas,
nos dentes em extrusão,
dói nos vícios e nas manhas,
dor expressa em convulsão.
Dor, consumptiva, doida,
sequer de si condoída,
para o pássaro alçapão,
constante em sua construção.
Em máquina de moer carne,
para esfacelar completo,
de onde sairá cuspida,
como esputo de um tísico.
Dor indisposta ao gozo,
em fuga se põe adiante,
jamais concede repouso,
não quer ser extasiante.
Descontrair dor tamanha,
sem fingimento ou ópio,
nem usar de artimanha
da dor do maior opróbrio,
é abrir mão da ubiqüidade
das garras que o demo tem,
sem com isso ser vaidoso,
sem com isso usar ninguém.
Pois sem o diabo, incréu,
na certa eu não seria enfermo,
foi com dor dos meus infernos
que escrevi algo no céu.
Faço agora um exorcismo
da dor que o demo traz,
não foi mágica zás - trás,
que me trouxe belo trismo.
Mesmo quando garatujo,
é por dor ser mitigada,
coração no peito sujo,
minha alma ensangüentada.
Então amo o feio e o belo,
amo íncubo fustigado,
com vara verde ou marmelo;
compaixão merece o gado
marcado a ferro e fogo;
entre bois também meu berro
muge, mas não faz mais rogo,
meu coração em desterro
bate no peito de novo.
Meu mediastino infla,
o demo não mais me insufla,
nem significa estorvo;
na alma o estrago foi feito,
não dói mais como doía,
cicatriz não é defeito
engrazado com fio guia,
dói tão-só na aparência,
em luz incruenta e fria,
luz que queima minha essência,
mais que a dor da epifania.
Deus, então, também espere:
se em disputa minha alma,
ao Demo clama por calma,
espere que o diabo erre,
sou apenas um mortal,
sob quem dor infligida
veio do bem e do mal
para me ceifar a vida.
Enquanto a vida é ceifada,
como feno para eqüinos,
dionisíaco, conturbo,
do mal toda empreitada;
do equilíbrio de uma corda,
bamboleio sem estar ébrio,
entrego a mim próprio as rédeas
do cavalo em disparada;
rumo ao sol como miragem,
de tudo que fiz de mim,
das virtudes e dos vícios,
sinto-me livre enfim.
Então, chego ao princípio,
sem abismo, não há fundura,
sou mesmo cavalgadura,
ou centauro um tanto ímpio,
é no corpo que cavalgo
de quadrúpede sobre obstáculos
que sou homem de respaldo
à alma do eu dividido.
Cindido, tenho dois braços,
aos dois anulo em ação,
com os dedos assino distrato,
é só meu, meu coração.

domingo, 2 de maio de 2010

Neurose

Dona Constança, minha professora primária, corpulenta de voz alta e sempre rouca, parecia estar sempre à beira de uma síncope. Eficiente, comandava a turma com segurança e severidade.
As matérias por ela ensinadas fluíam de forma seqüencial divididas somente pela hora do recreio, onde nas brincadeiras extravasávamos nossas tensões.
A atenção exigida pela professora era de minha parte extremada, por temê-la, nada perdia de suas aulas, das quais pouco aprendia, embora minhas notas lhe agradassem. Coisa que só pude compreender muito mais tarde.
Em tempo, pois quase me esqueci de citar um fato importantíssimo, que desde seu ocorrido me atormentou e moldou minha personalidade e meu caráter. O momento do lanche na sala de aula de uma escola pública, frequentada por crianças de classes sociais diferentes, preparava-me uma grande lição.
Nós, os alunos, crianças atormentadas por nossa professora muito eficiente e severa, não atentávamos para as diferenças sociais, que sequer sabíamos que existiam. Éramos iguais, pactuados em não descontentar a professora e aprender seus ensinamentos, mesmo não entendendo para que eles servissem. Éramos pares em nossos medos e nas nossas brincadeiras.
Naquela manhã, a senhora merendeira entrou pela sala com seu carrinho de lanches e iniciou de uma carteira a outra a distribuição dos acepipes. Um casadinho de biscoito de maizena com goiabada, acompanhado de leite achocolatado, uma delícia que esperávamos sob o olhar atento de nossa professora, educadamente em nossos lugares.
Cosme, um dos alunos que tinha assento próximo a mim, sempre melequento e desatento às aulas, era sempre vítima de prolongados sermões de Dona Constança. Ao receber o lanche da senhora merendeira, foi premiado com três casadinhos do biscoito com goiabada.
Ao ver o atendimento diferenciado ao colega, inocentemente questionei a diferença de tratamento ao colega de turma. Foi o pior momento de minha vida. Dona Constança, severamente ensinou-me, de uma tacada só, o que é diferença social, gulodice, ganância e pobreza. Como eu, um garoto de classe social privilegiada, que nunca passara fome, que tinha de tudo de bom e melhor, pleiteava merenda igual à do meu colega Cosme, um pobre menino que segundo nossa professora não tinha onde cair morto.
Cobri-me de vergonha e baixaestima, não consegui nem mesmo aceitar a guloseima, que joguei fora logo após a insistente merendeira, apesar de minhas negativas, a deixar sobre a minha mesa. Fato este que gerou novo sermão enfurecido de nossa digníssima mestra.
Deste dia em diante, jamais aceitei a merenda escolar e nunca mais dirigi a palavra a minha professora primária. E para afastá-la de mim, estudava suas aulas e conseguia boas notas. Percebia que meu desprezo a afetava, mas pouco poderia ser feito, não havia mais nada a salvar.
Este ocorrido e a disciplina com que persegui fazer a coisa certa moldaram de tal maneira minha personalidade que cresci com autocrítica exacerbada que atingia a todos a minha volta. Sofrimento e vergonha a cada erro cometido eram meus companheiros e às vezes alcançavam meus mais queridos, parentes e amigos. Uma vida perseguindo a perfeição, tão distante e escondida dos humanos.
“O sortilégio fora conjurado! ---Foi assim que fiquei sabendo o que é neurose.”

Alberto Daflon

sexta-feira, 30 de abril de 2010

O quinto elemento

Os quatro elementos cabem num outro,
senão água em Marte não existiria,
e como no oceanos e na terra sempre chove
isso é sinal dum quinto elemento
onde o abismo se alaga, onde o vento
que atiça ou apaga o fogo se move,
onde o oxigênio do ar o mesmo fogo consome.

Ar, fogo, terra e água cabem no espaço
mesmo se este for vácuo apenas,
poderá ser preenchido por um poema.

O quinto elemento é o infinito espaço
aonde vai o gesto delicado e o rude,
onde o amor é o enlevo da dança
e o gozo é fora de ritmo como terremoto.

O espaço onde a paixão urde sua trama
de fogueira ou ar duma superação completa,
onde o mar das águas poluídas é desejo
que deita na terra sobre verde grama
a moça, a bola, o atleta na hora da queda.

O espaço das minhas distâncias e solidão
é onde a perna cansa, a aeronave levanta
voo, o carro leva o velho para o hospital,
é onde somos substituídos no fim da vida
pelos que deixamos ou só conhecemos
na profunda carne, transcendente infinito.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

DESEJOS

a boneca preciosa
não chegou,
nem chegará.
A menarca esperada,
só chegou
para incomodar.
O primeiro namorado,
só causou
decepção.
Seus desejos
incontidos,
chegaram sem parar.
Decepção
por toda
a vida,

a fizeram
Chorar.
Mas viver
sem desejar,
é caminhar
e não chegar.


Alberto Daflon

domingo, 11 de abril de 2010

Judô

Justo naquele dia começara o horário de verão, talvez por isso o atraso de Evaristo. Trabalhávamos no mesmo hospital há um ano, nossos filhos tinham a mesma idade. Por contingências profissionais mudara para Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, a fim de ficar perto do Hospital onde possuía cotas. Éramos sócios. Adiantar uma hora do relógio e ainda aturar atraso é dose. Antes morava em Copacabana, ainda frequentava o Leme Tênis Clube. O combinado era ir à piscina e depois almoçar por lá. Mas Evaristo só chegou depois das dez horas. Está tarde, disse, sem desculpar-se, Copacabana fica muito longe, que tal irmos para Barra de Guaratiba? Olhei para minha mulher. Estava impaciente. Está bem, vamos logo então. Pode ser no meu carro? Pode. Marieta sentou atrás com as crianças. Evaristo ligou o ar e pôs som na caixa. Relaxamos. O trânsito ajudou, chegamos rápido. Está vendo lá embaixo é a Prainha. Lugar lindo. Faixa estreita de areia entre dois rochedos. Escadaria para descer do bar até à praia. Bom serviço de garçom. Pedimos duas caipirinhas e patinhas de caranguejo. Marieta, Coca Light. Guaraná para as crianças. Fascinada pelo mar Julinha não me deixou beber a caipira inteira. Comi só duas patinhas. Pai, vamos para praia? Já, já, espera um pouco. Comi mais uma patinha. Felipe não quis descer comigo, preferiu ficar com o pai. Evaristo se divorciara da mulher, o guri andava apegado. A Prainha é mar aberto. Apenas uns gatos pingados estavam na areia. Caminhei pela areia fofa. Senti piso duro e úmido sob meus pés. Hesitei em seguir em frente. O mar a uns dez metros. O mar sempre me intrigou pelas suas nuances de violência e cor. Juju agachara-se. Percebi a língua d’água agigantar-se a tempo de gritar, Ju corra para meu colo! Lutara judô pela equipe da faculdade nos jogos universitários, mas já não praticava há mais de 10 anos. Acolhi minha garota ao colo. Ela agarrou-se ao meu pescoço. Virei de costas e abri as pernas, com leve flexão dos joelhos. Os gatos pingados debandaram com medo de água fria. Marieta trocava olhar comigo. A língua d’água lambeu nossos corpos até o pescoço. Foi lá na frente e voltou tirando areia debaixo dos meus pés. Cavou um buraco. Saí do mar com areia até nos tornozelos. Fôramos salvos pela base do judô. Subi até o bar do rochedo, bebi o resto da

caipirinha e disse Evaristo vamos para casa.