MAR IGNÓBIL

MAR IGNÓBIL
LIVRO LANÇADO EM 2010

sábado, 28 de agosto de 2010

Travessia

ao meu irmão Alberto Daflon,filho


Enchente pós-chuva, na pulsante e ávida enchente;
menino, sim, era menino, e quis a travessia.

O rio sem margens, que comia grama, era o rio
barrento da roça de caminho barrento,
onde queria entrar sem saber para ir onde.

Os pés do primo e do irmão – o rio lambia-lhes os pés –;
meus pés buscavam a margem submersa; em meus pés
passos, com água às canelas, continuavam passos.

Surdo aos gritos, de pare! Pare! Pare! Continuava surdo.

Cobra, o rio me hipnotizava, como à rã hipnotiza a cobra.
Redemoinho, a cobra se contraía no redemoinho.
Submerso, caíra enroscado junto à margem do rio submerso.

Corpo sem reação, decidida cobra me apertava o corpo.
Embora, no fundo, no fundo, o rio quisesse me levar embora,
cobra me queria morto, na fome da sua fome de cobra.

Desenroscado o braço, levantei-o do corpo franzino enroscado.
Pelo punho meu irmão arrancou-me do redemoinho.

Na enchente pós-chuva, na pulsante e ávida enchente.
Menino, sim, era menino; e ainda hoje é cedo para travessia.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Complexo de Atlas

Sísifo, ao deixar pedra rolar
para o mesmo ponto abaixo da montanha,
enganava a morte, e ao lar
volvia a recomeçar mesma sanha;
jamais punha a pedra sobre os ombros,
nem mesmo de seu peso reclamava,
para agüentar o mundo e seus desassombros
preferia mão livre para clava;
mas Atlas ao contrário suportava
nas costas todo peso deste mundo,
por ser gigante de uma força extraordinária.
Um dia, descansado, Sísifo lhe disse
que iria deixar pedra rolar
para lado diverso da montanha,
talvez mais belo quem sabe do que o da casa,
mas Atlas implorou não fizesse isso,
pois isso ia causar desequilíbrio
na ordem do planeta sob os seus ombros,
e o mundo cairia, viraria escombros;
mas Sísifo no olhar de Atlas viu engodo,
e súbito a pedra caiu ao outro lado,
para que, sem a sina, enfim o gigante
aceitasse seu mundo como acabado.
Sem mundo o gigante ficou transtornado,
sua ira foi imensa, mas estava só;
Sísifo fora embora mudara de casa,
mas perto estava Prometeu acorrentado;
que ao ver o abutre devorar seu fígado,
não parecia infeliz, nem resignado;
Atlas aproximou-se, ofereceu ajuda,
mas Prometeu não quis ser desacorrentado,
pois ao roubar o fogo tivera o castigo
de o mundo libertar de todo e qualquer jugo,
mesmo de todo seu peso ter sobre os ombros
de um gigante forte, porém muito burro.

domingo, 22 de agosto de 2010

Pára com essa mania!

Cessar mania
é como passar fome
sem emagrecer;

não posso parar
sem beber um uísque
para ter calma,

sou viciado
na droga da mania
mas fujo dela

só para fazer
tudo que faço, penso,
de bom e fértil;

mas essa mania
um dia ainda matará
quem a faz viva;

então cessará
na hora da passagem
mania de ser

maior que ela
a doce mania
que me faz viver.

sábado, 21 de agosto de 2010

OÁSIS

todo encantamento
é feitiço recorrente
de alvoradas puras

prólogos de ilusões
do amor inconsútil
posto qual miragem

causada pelas sedes
da dama inconstante
chamada de alegria

restrita a um momento
menor que a hilaridade
do ser feliz completo;

então desencantar-se
é tornar-se um poeta
pobre e sem metáfora

que baterá na porta
mantida entreaberta
somente a noite escura

do encantamento torpe
dos luxuriosos prazeres
que murcham após o gozo

como se fossem rosa
da roseira arrancada
para fugaz surpresa

de quem apaixonada
quer manter-se bem vívida
por estar enamorada

do rito e da passagem
que leva a encantamento
da miragem no oásis.

MAGMA, o primeiro livro de poesia erótica escrito por uma brasileira: OLGA SAVARY.

Biografo-me em teu corpo despindo os cascos
e as crinas de égua a me tornar doce,
Côncava, amêndoa, combustível para os vôos:
mel para as nossas asas, fel para o repouso.
Olga Savary

Em recente entrevista a revista Marie Claire - nº 233, de agosto de 2010, com Carolina Dieckmann, na capa; Olga Savary declarou que “Quando o poeta fala de erotismo, fala porque não teve na dose que precisava. É mais falta que excesso.”
Poemas eróticos de Olga Savary podem ser lidos em seu site http://www.palavrarte.com/equipe/equipe_osavary_poe1.htm; são poemas ousados, mas nunca descem a mediocridade do sexo explícito e da pornografia tão comuns em 99% dos escritores amadores que, pela falta do erotismo, desfiguram os escritos eróticos como se este pudessem, de per si, satisfazer seus instintos animalescos indignos de serem registrados mesmo nos bestiários da pós-modernidade sôfrega e sem caminho.
Não sei escrever poemas eróticos, mas os de Olga Savary possuem a ourivesaria essencial as obras de arte, tocam a alma e o soma, excitam mais o prazer estético que a libido, não incitam ao onanismo e nem por isso são menos intensos do que qualquer tentativa vã de corromper o erotismo. Não são para serem lidos em alcovas de doentes e nem necessitam de espaço reservado para maiores de dezoito anos, posto que são alta literatura, de feminilidade ímpar e pioneira, por terem sido desde sempre os primeiros a constituírem um livro de poesia erótica no Brasil.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

E quando anão cavalgar ornitorrinco

na catraca do estômago bola de pingue-pongue
matará albatroz, inocente onívoro, das ilhas
não mais isoladas pelo oceano
indicado para se jogar o lixo,
oceano Pacífico, Atlântico, Índico,
desarticulados do Ártico,
tentados a desarticular o Antártico,
que nunca terão a densa
pureza do Mar Morto.

catraca, catraca, catraca;
catraca, catraca, catraca.

que catacrese, que nada,
o peixe voador voa para
fugir do mar infectado pelo pus
do abscesso civilizatório.

a bióloga cata esferovites,
metais e peças de plástico
no bucho do albatroz onívoro;

ovíparo alimento das ratazanas,
em paz para comer os albatrozes,
na alva e nos crepúsculos e nas tardes
dos programas televisivos do National Geographic.
Inspiring people to care about the planet since 1888.

Hotel cinco estrelas

Um dia o playboy surgiu na nossa vida. Não tinha irmãos, mas tinha uma irmã. Éramos dispersos. Mas nos reunimos sob a liderança do alemão para decidirmos o que fazer com o intruso metido a besta que dera um cascudo num colega de classe franzino. Que estória é essa de chegar aqui com essa banca toda?!... Foi mal, agora eu deixo ele me dar um soco na cara. Reunimo-nos em volta e a vítima, hesitante em relação a dar o troco, resvalou um soco na bochecha do intruja. Quero paz e amizade. Está bem. Agora éramos cinco, nós quatro e o metido a besta. Morava no Leblon, viera morar no Rocha, bairro do subúrbio carioca, por causa de problemas financeiros da família. Prazer, Hans, disse o alemão. Sou o Luciano, disse o afro-descendente com sua voz de âncora de jornal de TV. Sou o Domingos, disse o filho do português dono de boteco. Sou o autor desta crônica caros leitores e não disse nada, embora descenda de lusitanos e suíços. Então Luís propôs nos tornamos irmãos. Ok, mano, disse o Hans. Mas você precisa consertar esta calça pescando siri para ir ao Leblon, isso parece mais uma bermuda. Meu pai tem uma confecção, vai por mim, sei o que é moda. Passamos a nos reunir, menos para estudar do que para conviver. O alemão morava no bairro de Santa Tereza e o playboy tinha sua própria turma no Leblon, mas então era um sem teto naquele lugar melhor do mundo. Subimos o morro de bonde, fizemos festas na casa de Seu Hans, pai do nosso amigo, músico violoncelista da Orquestra de Câmara da Sala Cecília Meirelles, criador de guppies, gostava de cruzar os peixes ornamentais, coisas de interesse por genética. Na casa do Seu Hans, vindo para o Brasil no intervalo entre Guerras Mundiais do Século XX havia um tanque com uma pirambóia, único peixe pulmonado do Brasil. Dois pezinhos, um de cada lado do corpo preto de chouriço. Uma boca banguela. Dois olhos oligofrênicos. Balançava o rabo no fundo do tanque e depois o aquietava para o limo cair encima, antes que dobrasse como uma colher para enfiar na boca e alimentar-se. Tinha também um cachorro africano com pele de porco, uns parcos cabelos ocres na cabeça e uma mansidão sem fim. Mas o pai do alemão adoeceu, começou a urinar pedras, a eliminar pedras através da pele. Nosso amigo disse que precisava ir embora de casa porque a barra estava pesada. Mas não tinha dinheiro para pagar a inscrição no Concurso para Sargento Especialista da Aeronáutica. Estávamos então no último ano do ginásio ou primeiro grau, como é dito agora. O playboy sugeriu fazermos uma vaquinha para pagar a inscrição. Fizemos. Vida que segue. Hoje o Hans é Sub-Oficial reformado da Força Aérea Brasileira. Luís conseguiu ir morar no Leblon porque herdou de um tio ex-pracinha um apartamento no bairro que ama. Tenho cinco irmãos, todos no Rio de Janeiro, mas quando vou à urbe da minha natalidade. Fico na casa do meu compadre. De todos mencionados nunca perdi o contato com o playboy, dono de uma vídeolocadora de vasto acervo Cult – em geral assim é chamada a cultura, hodiernamente – além dos filmes comerciais de boa locação. Quando morou em Salvador fui visitá-lo de navio como médico de bordo do Contratorpedeiro Mato Grosso. Morei em Vila Isabel e, regressado ao Rio de Janeiro, o mano tinha a chave de meu apartamento. Frequentava-o para namorar a Lea em tempos de dureza nos dias de minha ausência por motivo de viagens ou plantões. Quando serviu como controlador de voo na Base Aérea de Lagoa Santa, o alemão teve um sítio perto para plantar, conforme declarou, linguiça e macarrão. Como militar foi a única vez que exerceu atividade não remunerada extra-serviço na ativa. O negrão, hoje, é engenheiro e nos reencontrou pela internet. O filho do portuga é engenheiro naval. Ontem mesmo estive na casa do meu compadre playboy para festejar o aniversário de minha afilhada Laura. Aquele lar é o único local onde tenho um hotel cinco estrelas da amizade. Lanche na padaria e, mais importante que tudo, nas calçadas a vida animada da zona sul.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

MÃE

ao nutrir filho,
mãe é árvore que não
dá fruto verde.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Mar dizível

Se a quilha do navio deixar trilha, o mar é dizível
nas velas desfraldadas em tímpanos dos ventos,
ventanias sibilantes das alvas e crepúsculos ou tempestades,
(mesmo sob a hora perpendicular do sol),
quando os seres abissais refugiam-se em maiores profundezas.
E o espírito goliardesco dos marujos está atento aos riscos,
aos riscos que a quilha do navio abre no mar;
no mar que não quer a demanda do navio ao porto.
O mar que engole com suas línguas todos os segredos;
o mar que aprisiona as sereias em enseadas e pedras;
o mar dissimulado das calmarias e do tédio;
o mar que invade grutas onde há a solidão dos náufragos;
o mar da ilha de Tortuga mergulhada em sangue,
o mar das pilhagens de navios por piratas da Somália,
o mar onde as cicatrizes abertas pela quilha se fecham
na esteira de espuma da popa, onde não há lanternas,
mas há o convés mais largo,
não infenso a solidão dos marujos e ao desespero.
Local que só interessa ao astrolábio pela existência do leme,
quando o horizonte é redondo e não há terra à vista.
Quando no passadiço o timoneiro importa igual ao Comandante
e cada membro da tripulação é uma célula viva da nave de ferro.
De fato, sem o fiel da aguada não há água doce,
e a água do lastro não é potável para ser bebida.
Sem o Contramestre o Oficial não descansa e a maruja
dorme no posto, na hora errada, no mar errante dos naufrágios torpes,
mesmo antes de serem lançadas espias aos cabeços dos portos
para surtar o navio depois do aviso apitado da ramonagem,
que alegra as mulheres das urbes portuárias e as do cais do retorno,
antes que a caldeira se apague e o navio durma um sonho,
no sono dos marujos ratos de bordo e dos que baixam terra,
na hora em que a noite é lançada como tarrafa sobre o oceano.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Endereço certo

Às vezes o abismo ao avesso é visto após a queda
como montanha agreste, com floresta e alimária,
sem picadas ou caminhos que levem a endereço certo,
quem no mundo se pôs ao largo
por ser incapaz de um abraço;

ou ao limite de um muro cercado
com cerca elétrica para evitar o choque
do excesso libertário bebido como dogma
sem que o ser tenha um amálgama;

assim vive no zoológico até mesmo o rei leão
e outros felinos, que desde que haja carne
mostrarão pouco os caninos; exceto
se por preguiça insistirem no rugido;

abençoado é um lar, com janelas
abertas ao sol há alegria na casa,
é doce, doce, a morada; be well come to home;
gostará de estar em casa somente quem for bom homem.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Corpo desuniforme

Teu corpo é alostrófico,
gostaria alabastrino,
quem nasce aqui no trópico
engorda ou fica franzino;

mas não faço engorda imensa
na hora da segunda estrofe,
abaixo do crânio que pensa
cultivo alargado tórax;

mas a barriga afina
em verso hexa-silábico,
os lábios da menina
olho c’os olhos estrábicos.

Sois cabeça tronco e membro, poemeto;
nada sou sem teu sentimento forte;
sempre cumpro as juras que prometo,
a incoerência não ajuda a sorte.

No caminho sinuoso dessa estrada longa,
fui onde o acaso me quis levar de avião;
mas quem acreditar nessa farsa ou milonga
poderá bater com a cara lá no rés-do-chão.

Se o corpo
do poema é esquisito,
um copo é
pré-requisito.

Verás um monossílabo
de cinco sílabas
escandidas pelos lábios
de uma ladra;

ou fada se souber
a mágica do latrocínio
de ao oferecer a úbere
me tornar bem menos cínico;

pois peço sua atenção,
como pedinte a voyer,
que sente algum tesão
ao ler o poema que lê;

claro, apenas para numa fresta
olhar o poema acabado;
em ritmo de grande festa
rock'n'roll, samba e xaxado.

Balada a la bahiana

Salve, salve o tornozelo
que movimenta o pé,
se ele for contundido
não jogo como Pelé,
que se foi um grande craque,
hoje é marca de café.
Cafezinho amargoso
servido após canapé,
ainda bem nunca servido
lá no tempo do rapé.
Como morei na Bahia
ainda canto o afoxé,
um dia quase afoguei
na Lagoa do Abaeté,
e foi um Deus nos acuda
explicar para Maitê,
com ênfase de rima aguda
aonde eu fui me meter
pra chegar molhado em casa
com cara de muito axé!
Mas driblei minha mulher
com carinho e cafuné,
melhor ser homem do mundo
do que ser bicho-de-pé.
Que no solado da esposa
só adormece o blasé,
onde a mariposa voa
sempre há muito o que fazer;
faço amor com a patroa
porque sei andar com fé.

Adynaton

Tão fora de mim e de si
a ação já consumada
nega revisão de texto;
quem sabe dos não
poemas e da despoesia
são os irmãos Campos.
Pior que adágio musical
incapaz de acontecer
o poema se tornar poema
é o popular tautológico
que nunca diz algo adrede;
então caia sobre a folha
a bomba de mil megatons
na ante-véspera inadiável
de um silêncio absoluto
- para o osso esburgado
de que adianta o gesso?

O sabiá...

Fui pego de surpresa pelo amor,
ainda muito verde de ciúmes,
já sei que cada faca tem dois gumes,
desdenha de mulher traduz clamor.

Então andava triste e cabisbaixo,
tocava meu contrabaixo em langor,
roufenha era a música, sou baixo,
mas era longilíneo meu fragor.

Igor era alto, gordo e bem mais forte,
acreditei em ira em meu vigor,
jurei para contenda luta à morte,

Mas ela não era séria e eu não sabia,
tomei logo um direto bem nos cornos,
restou-me ouvir cantar o sabiá...***

Flor do cardo

Junho, julho, agosto, floresce o cardo,
com folhas bicolores brancas como leite
na página debaixo onde coagulado
lembrança traz de queijo e doce de leite,

E verdes na de cima, que emergem do talo,
que elevará flor amada por queijeiros,
na industria de usa-la por coagula-lo
(o leite) se arrancadas dos canteiros

Em sua forma de tubo e cor violácea,
com poderosa enzima sobre a massa láctea,
em queijo transformada para o palato.

Setembro, posto à mesa o queijo da Serra,
orgulho português, honra da lusa terra,
que degusto com vinho, taça junto ao prato.

domingo, 15 de agosto de 2010

Soneto pelo enlouquecimento

Sabes? Só sei de ti intrincados labirintos
de heras verdes amuradas e centrípetas,
por onde vagam muitos anjos e capetas
para rirem-se do ardor dos meus instintos
até que louco eu me perca em circunstâncias,
no descaminho mais tristonho da rotina,
qual alienado que sequer pensa ou atina
que o estugar passos aumenta as distâncias,
mas essa dor da tua ausência é precedente,
não some, não alivia e só tem lenitivo
quando sinto tua carne possuir minha alma.
Paixão de entrega máscula assim pungente,
só posso em lealdade a tudo que estivo,
mas força só adianta ao toque da tua palma.

sábado, 14 de agosto de 2010

Agripina

- Ser filho de Agripina não foi fácil,
envenenou marido, foi muito má.
Comigo se fez sexo, nunca foi dócil,
mãe, desde a apojadura, pior não há.

- Cometer parricídio, Nero não vi,
poupei-o de tamanha aleivosia.
Fui consultar vidente, logo ouvi:
seria imperador em apostasia.

- Eu jamais senti dó ou dei perdão,
contra mãe sentir ódio causa receios,
foi no ventre da besta a danação!...

- Enfia tua adaga centurião,
enfia a haste toda entre meus seios,
alimentei um monstro, enfia então...

mar ignóbil

o mar ignoto e ignóbil

invadiu as planícies e curvas

que bordam teus seios


os efluentes dos terminais,

o óleo dos barcos e navios

não eram apenas do viajor


nem do improvável porto

bafejado por brumas frias

ou hálito quente de verão;


mas impurezas são bem vindas,

amor não é depuração d’água

das ondas espumantes da saliva.

desconcentrações

numa osmose do alheio

a densidade da experiência

não se concentra no ser,


o sal do sangue precisa

do mesmo ser aberto para as veias

de cada universo,


ventosas não sugam

as substâncias vitais

mas caem de cansaço


ou pela dor da exaustão,

como moréias mortas

locupletas de sangue;


a inspiração ofegante

não substitui o lobo

pulmonar destruído pela ira.


o fato é que a boca

do trombone precisa do sopro

para ser grito ou música.
Buenos Aires

Rosita era Argentina e a flor do seibo
coloria os seus lábios de paixão,
escrevo sob a terra em meu caixão
romance que ainda não concebo

por ter me conduzido à situação
de morto em Buenos Aires por seu filho.
Viúva ela andava bem no trilho
do trem onde roubou meu coração

e a rodocrosita no pingente
caía entre suas mamas de cor âmbar.
Eu quis misturar tango com bom samba.

Carlito com revólver deu o tiro,
olhei-a preste ao último suspiro,
caída também morta em sua cama.
Nos umbrais da quimera

Nos umbrais da quimera me contive,
pois pássaro não entra em alçapão
atrás de um pedacinho de pão,
sem ter uma donzela no declive.

E a virgem estava lá a minha espera,
tão pura embora nua e bem tímida,
toquei-a com a mão toda tremida
e fiz da sua barriga uma esfera.

Barriga de lua grávida e púbere:
a tal da gravidez da adolescente,
que terminou em morte prematura.

A mãe que não foi mãe nem me recebe,
embora eu leve sempre um presente,
com minha mão de velho insegura.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

JUDÔ

Justo naquele dia começara o horário de verão, talvez por isso o atraso de Evaristo.Trabalhávamos no mesmo hospital há um ano, nossos filhos tinham a mesma idade.Por contingências profissionais mudara para Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, a fim de ficar perto do Hospital onde possuía cotas.Éramos sócios.

Adiantar uma hora do relógio e ainda aturar atraso é dose. Antes morava em Copacabana, ainda freqüentava o Leme Tênis Clube. O combinado era pegar uma piscina e depois almoçar por lá. Mas Evaristo só chegou depois das dez horas. Está tarde, disse, sem desculpar-se, Copa fica muito longe, que tal se formos para Barra de Guaratiba? Olhei para minha mulher. Ela estava de saco cheio. Está bem, vamos logo então. Pode ser no meu carro? Pode. Marieta sentou atrás com as crianças. Evaristo ligou o ar e pôs som na caixa. Relaxamos. O trânsito ajudou, chegamos rápido. Está vendo lá embaixo é a Prainha. Lugar lindo. Faixa estreita de areia entre dois rochedos. Escadaria para descer do bar até à praia. Bom serviço de garçom. Pedimos duas caipirinhas e patinhas de caranguejo. Marieta, coca light. Guaraná para as crianças. Fascinada pelo mar Julinha não me deixou beber a caipira inteira. Comi só duas patinhas.

Pai, vamos para praia? Já, já, espera um pouco. Comi mais uma patinha. Felipe não quis descer comigo, preferiu ficar com o pai. Evaristo se divorciara da mulher, o guri andava apegado. A Prainha é mar aberto. Apenas uns gatos pingados estavam na areia. Caminhei pela areia fofa. Senti piso duro e úmido sob meus pés. Hesitei em seguir em frente. O mar a uns dez metros. O mar sempre me intrigou, seja como metáfora do desejo seja pelas suas nuances de violência e cor. Juju agachara-se. Percebi a língua d´água agigantar-se a tempo de gritar, Ju corra para meu colo! Lutara judô pela equipe da faculdade nos jogos universitários, mas já não praticava há mais de 10 anos. Acolhi minha garota ao colo. Ela agarrou-se ao meu pescoço. Virei de costas e abri as pernas, com leve flexão dos joelhos. Os gatos pingados debandaram com medo de água fria. Marieta trocava olhar comigo. A língua d’água lambeu nossos corpos até o pescoço. Foi lá na frente e voltou tirando areia debaixo dos meus pés. Cavou um buraco. Saí do mar com areia até nos tornozelos. Fôramos salvos pela base do judô. Subi até o bar do rochedo, bebi o resto da caipirinha e disse Evaristo vamos para casa.

Historicidade na obra de Mario Vargas

O trabalho de pesquisa desenvolvido buscará estabelecer bases para a compreensão das relações entre literatura e história na obra do escritor peruano Mario Vargas Llosa, sem procurar analisar aspectos da rica narrativa da prosa vargas llosaiana. O estudo visa a destacar, além das paráfrases históricas que compõem os enredos dos romances, a importância dos personagens no que tange às suas participações no processo histórico, sejam eles protagonistas ou deuterogonistas e para atingir esse desiderato foi lida a maior parte da produção de Vargas Llosa como romancista, ou pelo menos os seus livros mais importantes. Ademais, não foi desconsiderada a importância do escritor no jornalismo e como crítico literário, com citações bibliográficas da sua produção na imprensa, mormente crônica, que corroboram e traduzem a importância e o relevo com que Vargas Lhosa concebe o tempo histórico.

SUMÁRIO
1) Introdução
2) Historicidade na obra de Mario Vargas Llosa
3) Conclusão

1)Introdução

O romance histórico nasceu da tradição da crônica de conquista e do exemplo europeu. Em fins do século XIX, tornasse mais interessado nos fatos políticos e sociais, convertendo-se em documento de testemunho ou participação.
Em literatura, há quatro modos de formação do enredo historiográfico: o romanesco, o trágico, o cômico e o satírico , pelos quais Vargas Llosa transitou com maestria.
No romance histórico a matéria do romancista é o tempo. Segundo Octávio Paz, confundidos presente e passado deslizam para uma cavidade oca que tritura: a história .Sem o conjunto de circunstâncias a que chamamos Grécia não existiriam nem a Ilíada nem a Odisséia; mas sem esses poemas tampouco teria existido a realidade histórica a que chamamos Grécia. Ainda segundo Paz:

A condição dual da palavra poética não é diversa da natureza do homem, ser temporal e relativo mas sempre lançado ao absoluto. Esse conflito cria a história. Dessa perspectiva o homem não é mero suceder, simples temporalidade. Se a essência da história consistisse apenas em um instante suceder o outro, um homem a outro, a mudança se resolveria em uniformidade e a história seria a natureza .

Vargas Llosa, amigo pessoal do escritor mexicano, tem clareza absoluta da importância do homem – ser humano – como ator da história, daí a importância conferida aos personagens, sejam protagonistas ou deuterogonistas, muitas vezes sua prosa assume, de fato, um caráter polissêmico.
Escritor e crítico da literatura do século XX, Vargas Llosa afirma que a literatura é:
...além de um dos mais enriquecedores afazeres do espírito, uma atividade insubstituível para a formação do cidadão numa sociedade moderna e democrática, de indivíduos livres, e que, por isso mesmo, deveria ser inculcada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas de educação como uma disciplina básica.
A literatura é um desses denominadores comuns da experiência humana, graças qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, não importa o quão distintas sejam suas ocupações e desígnios vitais, as geografias e as circunstâncias em que existam, e, inclusive os tempos históricos que determinam seus horizontes .

Entretanto, como a matéria do escritor á a ficção, o romance sempre parte do tempo psicológico, não do cronológico, sendo capaz de conferir a aparência de objetividade, conseguindo que a ficção se distancie e diferencie do real (obrigação de qualquer escritor que deseje viver por conta própria) .
Na verdade, cada escritor, no ato de realização da sua prosa, distancia-se da realidade para melhor percebê-la. Tornando-se assim um observador participante, no ato da criação literária.

2) Historicidade na obra de Mario Vargas Llosa

De tal monta é a historicidade na obra literária de Mario Vargas Llosa que, independente da ordem cronológica do lançamento de seus livros, podemos fazer breves resenhas de cada um pela representatividade que tenha referido a determinado período histórico, seja em relação ao Peru, país natal do escritor, ou a outros países onde a ocorrência de eventos históricos chamou-o a escrever romances de base factual dando vida literária aos personagens envolvidos.
Da mesma forma que José Lins do Rego deu vida aos personagens de Casa Grande & Senzala, obra maior de Gilberto Freyre, Vargas Llosa deu vida aos personagens de Os Sertões, livro reportagem de Euclides da Cunha, com outras características além das de reportagem que foge ao escopo dessa monografia comentar.
O distanciamento de Vargas Llosa da realidade peruana inclui um distanciamento geográfico, vejamos, como na condição de literato, ele demonstra isso no capítulo inicial de um dos seus livros:

“ Vim à Florença para esquecer-me um tempo do Peru e dos peruanos e eis que o malfadado país me veio ao encontro esta manhã da maneira mais inesperada. Havia visitado a reconstruída casa de Dante, a igrejinha de São Martinho Del Vescovo e a ruazinha onde a lenda diz que ele viu Beatriz pela primeira vez, quando na rua de Santa Margherita, uma vitrina me deteve de brusco: arcos, flechas, um remo lavrado, um cântaro com desenhos geométricos e um manequim embutido em uma cushina* de algodão silvestre. Mas foram três ou quatro fotografias que me devolveram, de chofre , o sabor da selva peruana. Os largos rios, as corpulentas árvores, as frágeis canoas, as fracas cabanas sobre palafitas e os viveiros de homens e mulheres seminus e lambuzados de tinta, contemplando-me fixamente de suas brilhantes cartolinas.”

O parágrafo inicial do livro acima é de um livro que trata da memória coletiva dos índios machiguengas da Amazônia peruana, que nos permite desde o início deduzir como é difícil sobre a memória de um povo para um escritor europeizado.
Mas disso não escapa nenhum intelectual do terceiro mundo. O que Vargas Llosa faz por meio de seus personagens, e identificando-se com eles, é mostrar que há uma relação inumerável desses indivíduos para melhorarem suas condições de vida, seja não se submetendo a regimes despóticos – falaremos ainda sobre isso – , seja procurando solução para as suas misérias, até mesmo com o uso consciente das circunstâncias históricas.
É o que podemos observar em seu livro mais polissêmico: A CASA VERDE, romance em que o autor ora põe o leitor entre os habitantes do subúrbio de Marigucheria, onde o vento do deserto faz chover areia todos os dias, ora em uma canoa, num igarapé, entre índios e aventureiros .
Em A CASA VERDE, pomos em relevo a personagem Bonifácia, uma ex-selvagem, servente de convento, expulsa dali por ajudar a fuga de duas meninas selvagens capturadas pelo Exército Peruano. Bonifácia, expulsa, termina por se casar com um Sargento, que reconhecia nela as virtudes para ser uma boa esposa. É assim que Bonifácia ascende na capilaridade social da condição de servente de convento par a de esposa de militar, unicamente com o uso dos parcos recursos pessoais que tem, o que confere humanidade e grandeza ao seu personagem: vencer adversidades históricas, algo que é tônica na prosa de Mario Vargas Llosa, principalmente no que tange a personagens que emergem da pobreza e da proximidade da natureza em estado bruto, caso de Bonifácia.
Mas essa temática da natureza e do homem primitivo ou do processo civilizatório em contraposição à natureza é mais aprofundada ainda no livro O PARAÍSO NA OUTRA ESQUINA , no qual Vargas Llosa apresenta o retrato pungente de duas figuras do passado: Flora Tristán e Paul Gauguin, avó e neto, a primeira com ancestralidades familiares no Peru; com cada um em seu momento procurando romper as amarras da sociedade; Flora com sua crença cega no socialismo utópico e Gauguin com a arte da pintura, ambos os personagens sendo empurrados para fins trágicos, apesar das grandezas de suas aspirações e mentes criativas.
Nesse romance, como tomada de posicionamento histórico, Vargas Llosa, narrador onipresente, chega a ser paternalista com os personagens, principalmente com Flora Tristán, que tem oportunidades de organizar uma vida “pequena burguesa” várias vezes em sua biografia, mas abre mão de tudo em função da luta pela igualdade entre os homens, num mundo que sequer precisaria de exércitos.
O romance acima comentado marca a transição do século IXX para o XX, trata de personagens nietzchineanos, Flora na onipotência cega da utopia de mudar o mundo, Gauguin na concupiscência sifilítica que o faz pintar seus últimos quadros com visão binocular (ou central), visto que as estruturas da retina responsáveis pela visão de campo haviam sido destruídas pela doença proteiniforme.
A obra de Vargas Llosa leva a refletir sobre a impossibilidade da existência da natureza estática, até mesmo a natureza humana, face ao progresso tecnológico. Gauguin morreu pobre, como Van Gogh, a leitura do romance biográfico escrito por Vargas Llosa, emociona e situa o leitor quanto às utopias do século XIX, muitas das quais permearam todo o século XX ( volta à natureza, socialismo e pansexualismo, caso de Guaguin); hoje em dia essas utopias ainda arrebatam muitos corações e mentes. A Igreja contribuiu para que Gauguin terminasse a vida quase como um mendigo. Mas numa sociedade em que os conservadores acusam a existência de uma ultraliberalidade, a expressão das condutas sexuais permeia a mídia. É interessante notar que Vargas Llosa chama a sífilis de doença impronunciável. De fato, até a descoberta da penicilina a sífilis era como a AIDS antes da oferta de medicamentos anti-retrovirais, que compõem o chamado coquetel. Uma doença impronunciável e até muito mal compreendida quanto aos meios de transmissão, chegando a ser chamada de peste moderna, é óbvio que o escritor quis que o leitor cotejasse essas duas nosologias ou morbidades, como preferirem.
Ultrapassadas as etapas relacionadas ao pêndulo entre história e natureza na obra de Vargas Llosa, podemos dizer que os romances mais densos em tempos históricos o escritor relegou ao século passado, na maioria das vezes sem usar as prerrogativas da sátira e do cômico ou mesmo da paródia. Isso devido, sem dúvida, à dramaticidade do processo histórico em toda a América Latina na centúria referenciada.
Posto o quê, leiamos abaixo um trecho do livro BATISMO DE FOGO (posteriormente, republicado no Brasil sob o título original A CIDADE E OS CÃES), para que possamos analisar:

“Nos domingos de manhã, depois do café, reza-se a missa. O capelão do colégio é um padre louro e jovial que faz sermões patrióticos exaltando a vida impoluta das grandes figuras nacionais, o seu amor a Deus e ao Peru, tecendo loas à disciplina e a ordem, e comparando os militares com os missionários, os heróis com os mártires, a Igreja com o Exército.Os alunos gostam do capelão porque sabem que é um verdadeiro macho: já o encontraram várias vezes , vestido a paisana, zanzando pelas ruas mais miseráveis de Callao, cheirando a álcool e com olhar lúbrico”.

A escolha do trecho acima se justifica porque o século XX foi dominado por guerras e estratégias diferentes das que começaram a se delinear a partir da queda do Muro de Berlim; a saber: duas guerras mundiais e a Guerra Fria, no curso das quais os militares, na América Latina, se outorgaram uma supervalorização política. Valorização essa que Vargas Llosa, em prol de forças armadas democráticas, criticou de forma acerba e coerente. Sempre em prol da verdadeira apuração dos fatos, como o fez em cinco romances: QUEM MATOU PALOMINO MOLERO ;CONVERSA NA CATEDRAL ; A FESTA DO BODE ; PANTALEÃO E AS VISITADORAS ; além do já citado BATISMO DE FOGO.
Em QUEM MATOU PALOMINO MOLERO, Vargas Llosa escreve um romance policial. O morto é um seresteiro que se alistou na Aeronáutica para ficar perto de sua amada, a filha do Coronel Mindreau, Comandante da Base Aérea. Palomino foi assassinado pelo Tenente Dufó, que pretendia casar-se com a moça, criada pelo pai viúvo e abusada por ele; não é apenas a crueldade com que Palomino é morto, que chega a chocar o mandante do crime, o Coronel, que admite que teria matado a vítima apenas com um tiro na nuca, sem ter empalado, cortado o corpo em tiras, eviscerado o testículo encontrado entre as pernas.
O inusitado é que quando o Tenente Silva e seu assistente o Soldado Lituma desvendam o crime, com o subseqüente suicídio do Coronel Mindreau, é que ninguém acredita na realidade dos fatos; inclusive que antes do suicídio o Coronel Mindreau matara a própria filha, que dera subsídios para o esclarecimento do assassinato, quando confessara que fugira com Palomino Molero e que fora resgatada pelo Tenente Dufó.
A população prefere crer que o crime fora causado por problemas de contrabando, caso de espionagem com mão do Equador e até coisa de veado. Fabulação do povo local com elementos constantes da história (versão inverídica?). Dom Jerônimo um deuterogonista de somenos importância até então, assume importância no romance, quer saber quanto os peixes graúdos pagaram para que fosse inventada a versão de que o Coronel se suicidara.
Crime elucidado os dois policiais estaduais são transferidos para localidades distantes, nas fronteiras.
Em o BATISMO DE FOGO (A CIDADE E OS CÃES), Chacal, um dos alunos mata outro aluno, o escravo, como era conhecido pejorativamente, porque era submetido a todos folguedos sádicos ( bullying). O assassinato ocorre durante um exercício de guerra, o aluno conhecido por Chacal, ao fim do romance, como demonstração inútil de hombridade, confessa o crime. Mas a direção da escola militar acolhe apenas a versão do acidente. Fica óbvia a intenção do escritor em denunciar a violência das relações humanas numa instituição formadora de falsos líderes – naquele momento em que a Guerra Fria propugnava sempre pela violência hierarquizada dentre das Forças Armadas Latino-americanas.
No veio romanesco da trama ocorre que o assassinato é um crime passional e que Ricardo Arana, o escravo, é morto pelo Chacal por que ambos disputavam a mesma namorada. Mas o Chacal é expulso do colégio militar, inclusive por brigas com o poeta, personagem com matizes autobiográficas do escritor, que o denuncia como assassino, que briga com o Chacal na mesma cela até ser massacrado, sem um grito, para que a contenda fique apenas entre os dois.
Em CONVERSA NA CATEDRAL e em A FESTA DO BODE, Vargas Llosa a corrupção e a violência avassaladoras das ditaduras de Ódria, no Peru, e de Trujillo, na República Dominicana.
Em CONVERSA NA CATEDRAL, o jornalista, personagem, Santiago Zavala dialoga com dois amigos: Ambrósio e Carlitos, numa mesa do bar A CATEDRAL, em Lima. O tempo da narrativa é o da época do ditador General Ódria, de 1948 a 1956. Filho de Dom Fermim, empresário que obtinha empreitadas para obras não licitadas com lisura pelo governo. Zavalita tem problemas de relacionamento com o pai, que por sua vez não compreende as razões que levam o filho à não querer escrever sobre política, preferindo escrever sobre esportes e ganhar mal.
Ambrósio – um dos homens de confiança do Ministro da Segurança, então trabalha num canil, para sacrificar cães sem dono, e recorda as baixezas de seu chefe. Carlitos é alcoólatra. Zavalita, na verdade, atua como observador não participante, papel de escritor. E Vargas Llosa mais uma vez demonstra o ceticismo em participar de certos processos políticos, mesmo como oposição, embora em sua biografia haja registro da candidatura à Presidência da República do Peru, quando chegou a ir ao segundo turno contra Alberto Fujimore.
Apesar de o próprio Vargas Llosa considerar CONVERSA NA CATEDRAL como sua obra maior, é em A FESTA DO BODE que consegue colocar um ditador como protagonista do romance: Rafael Leônidas Trujillo Molina – da República Dominicana, e dissecar a personalidade de um psicopata, sem psicologismos, mas deixando que o personagem se revele em todas as suas atitudes de frieza e maldade.
Os leitores hão de se lembrar de Idi Amim Dada ao lerem história romanceada de Trujillo.
Ditador capaz de fornicar com as mulheres de seus subalternos e acólitos. Como foi o caso de Urânia, filha do Senador cerebrozinho, uma das narradoras do livro, deflorada com o dedo pelo ditador impotente, após ter sido mandada pelo pai a uma festa com o ditador e ter tentado, inutilmente, por meio de um fellatio que o velho Trujillo tivesse uma ereção.
Quando Urânia, que nunca teve outro homem na vida além de Trujillo, volta à ilha onde jurara nunca mais colocar os pés, voltamos a 1961, quando a capital dominicana ainda se chamava Ciudad Trujillo. Ali um homem tiraniza três milhões de pessoas sem saber que se desenvolve uma maquiavélica trama de transição para a democracia.
Vargas Llosa, no romance em tela, dá voz a diversos personagens históricos: à esposa e aos irmãos e filho do ditador, a seus apadrinhados, aos homens que tramaram e executaram o assassinato do déspota e ao sossegado e hábil doutor Belagher – o homem da transição para a democracia, que, na ocasião, assumiu a Presidência da República Dominicana, fazendo ordens ao Banco Central para que pagasse montantes milionários aos Trujillo para que saíssem do país, mesmo porque se algo acontecesse a sua pessoa os marines americanos invadiriam a ilha, sob as ordens de Kennedy.
Em dois outros romances Vargas Llosa, ao narrar fatos verídicos, é compelido ao cômico e ao satírico e mesmo à paródia.
Em PANTALEÃO E AS VISITADORAS o escritor parodia sobre como o Exército Peruano criou um “Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteiras e Afins” com o fito de desafogar as ânsias sexuais ou ansiedades orgásticas das guarnições da Amazônia peruana.
Vejamos o que diz, no livro, o Coronel Tigre Collazoz, sobre as motivações para a criação do “Serviço de Visistadoras”:

_ Em poucas palavras, a tropa da selva está comendo as cholas. Há estupros a granel e os tribunais já nem conseguem julgar tanto safado. Toda a Amazônia está em alvoroço.

Oras, em clichês militares isso significa que houve naquele instante uma incapacidade institucional em atender à demanda de julgamentos na Justiça Militar, o que levou a uma determinação de necessidade para gerar um planejamento a fim de desreprimir essa demanda, que resultou no planejamento e na criação de um “Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteiras e Afins”.
Comparemos a situação com a de um país ocupado por Forças Armadas estrangeiras com a de um país assolado por uma ditadura militar; no primeiro caso há uma situação de guerra, com os costumeiros estupros causados pelos soldados do exercito invasor; no segundo caso também há uma situação de guerra, dentro do contexto da Guerra Fria, na qual se faz palco da “invasão” o próprio país natal dos soldados, na América Latina, no tempo das ditaduras militares, onde de fato esses estupros ocorreram e chegaram a proporções incontroláveis no Peru.No Brasil, José J. Veiga, no romance A SOMBRA DOS REIS BARBUDOS, fez uma belíssima alegoria do que é a invasão desses soldados contra o próprio povo. O livro é sombrio.
Em seu PANTALEÃO E AS VISITADORAS, Vargas Llosa, em paródia impagável, faz o relato da criação do ‘Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteiras e Afins”, da sua hipertrofia, por ser impossível manejar estatisticamente o controle da ansiedade orgástica da tropa, até o fechamento do Serviço e desbaratamento de toda a estrutura logística que fora montado, com a subseqüente ruína da carreira militar do Capitão Pantaleão Pantoja, na verdade um neurótico obsessivo, mais do que consciente da importância do cumprimento do dever e do que representaria para a sua carreira um fracasso na missão, por mais estranha que lhe parecesse.
Reparem que pela formação liberal do escritor, apesar das constantes denúncias de truculência e de abuso do poder (como é o caso do que ocorre em seu livro PANTALEÃO E AS VISITADORAS), não há nenhuma pugna em sua obra pela a implantação de regimes salvíficos como o socialismo. O escritor crê na democracia e que se um país não está bem é porque a democracia está sendo mal aplicada.
Em TIA JÚLIA E O ESCRIVINHADOR temos o mais rocambolesco romance de Vargas Llosa, mas o pano de fundo é a era do rádio no Peru, com as novelas e os costumes daquele tempo, vivido até mais tardiamente na América do Sul. È um romance de costumes, o mais autobiográfico do autor, o Varguita, ainda jovem em suas atividades literárias e tomadas de posicionamentos frente à vida. A obra de Vargas Llosa mostra assim um caleidoscópio de percepções do mundo, da história e da política, sendo o escritor capaz de assumir posições inclusive como cronista de jornal, frente a questões como o aborto, a eutanásia, os movimentos migratórios, voltaremos a esse ponto mais adiante.
Em nossa opinião, não só por ser um dos romances mais recentes de Vargas Llosa, o livro TRAVESSURAS DA MENINA MÁ(19)representa a síntese do pensamento liberal do escritor, no qual Otilita, nome real da menina má, nome que ela renega por reportá-la à infância pobre em subúrbio de Lima, é uma personagem semelhante a de Mildred do livro SERVIDÃO HUMANA de Sommerset Maughan, e tem sua confusa e interesseira trama amorosa com um tradutor profissional Ricardo Somocurcio.
A história de ambos começa nos anos 50 ( Vargas Llosa, na verdade, em quase todos os seus livros traça um vasto panorama histórico da segunda metade do século XX), em Lima. No bairro Miraflores, onde o jovem Ricardo se apaixona pela “misteriosa e estonteante chilena Lily”, que a realidade revela ser uma menina humilde de um subúrbio pobre. Ele a perde de vista, mas não consegue esquece-la.
Os dois personagens vêem seus caminhos cruzarem-se ao longo dos anos em cidades como Paris, Londres, Tóquio e Madri, à medida que esse amor cresce e se transforma – como a menina má que faz travessuras perversas, troca de nomes, aparece sem avisar, mas sempre perturba a vida pacata de Ricardo Somocurcio.
É contra o poder das circunstâncias que a menina má faz sua afirmação como personagem. É contra todas as peripécias dela que Ricardo afirma um amor de uma ética compassiva inigualável (posição do escritor frente aos que procuram a todo custo fugir da miséria e mesmo ter grandes ambições).
De fato, no início de sua trajetória a menina má está em Cuba, em treinamento para se tornar guerrilheira para depois voltar a sua terra natal – o Peru – aonde militaria pela implantação do socialismo, sem ter nenhuma formação ideológica compatível com a proposta, usando a possibilidade apenas para fugir da miséria no Peru. Caráter frívolo e oportunista, porém de uma coragem a toda prova e força de vontade irrefreável.
Em Cuba casa-se, sob nome falso, com um diplomata francês, que a leva de volta a Paris.
Não cabe aqui falar detalhadamente sobre essas peripécias, mas é justo o realce que a personagem faz das circunstâncias, até para fugir dos imbróglios conjugais que vai deixando pelo caminho. Sofregamente, sem dúvida, que por sua origem é acolhida carinhosamente por Vargas Llosa, em sua prosa romanesca ultraelaborada.





3)Conclusão

Sem tergiversar, porém por ser oportuno, findamos esse ensaio com comentários sobre a crônica OS PÉS DE FATAMAUTA , na qual não é mais o romancista que fala, mas o jornalista Vargas Llosa, que nos conta a história de Fatamauta Touray, natural da Gâmbia, que quiseram queimar viva em Baryoles, na Catalunha. Pés quebrados, juntos com costela e dentes, ao pular do sobrado onde se escondia junto com outros imigrantes.
Segundo Vargas Llosa o que Fatamauta fazia em Baryoles é fácil de saber:

Ela não estava ali veraneando, desfrutando das suaves brisas mediterrâneas, saboreando os belos manjares da comida catalã, nem praticando esportes estivais – repito que é a mais justa aspiração humana – tentando encher o estômago com o suor da fronte.

Vargas Llosa, escritor sem utopias, é um liberal e um humanista, favorável ao livre trânsito das pessoas entre os países. Optou por ser um cidadão do mundo, sem perder de vista nunca a aldeia onde nasceu, ele mesmo, guardadas as devidas proporções em relação a seus personagens fez seus movimentos migratórios e circula hoje livremente entre Lima, Londres, Paris e Madri. Foi fazendo o gancho da sua terra natal com o velho mundo, hoje chamado primeiro mundo, que construiu a maior parte da sua obra literária. A historicidade em sua prosa é a do movimento entre a América Latina e sua capital intelectual a França, mas não somente isso, talvez tenha sido o escritor e intelectual que mais devotou esforços criativos para que as realidades dos países do continente latino-americano fossem conhecidas; vejamos a publicação recente de seu DICIONÁRIO AMOROSO DA AMÉRICA LATINA , onde comenta os atrativos mais fortes de cada país – o Brasil aqui representado pelo carnaval carioca, pelo futebol e por Euclides da Cunha, Jorge Amado e Rubem Fonseca, entre outros que escreveram romances em paráfrases da história do Brasil e o Peru pela culinária e por extratos de partes seus escritos aqui, neste ensaio, representados também.
Reparem por fim que em seu dicionário Vargas Llosa cita com realce autores brasileiros que têm suas obras literárias muito ligadas à história do Brasil. Na certa essas preferências não são mera coincidência.




1) Textos teóricos
Josef, Bella Karacuchansky – História da Literatura hispano-Americana/ Bella Josef – Romance histórico . 3º ed. Rio de Janeiro: F.Alves; 1989
Lima, Luiz Costa – História.Ficção.Literatura/Luiz Costa Lima, pág. 18. São Paulo : Companhia das Letras. 2006
Paz, Octávio – Signos em rotação – Verso e Prosa.Editora Perspectiva. 1985. pág.20

2) Textos de Mario Vargas Llosa
Vargas Llosa, Mario – A verdade das mentiras/ Mario Vargas Llosa; Tradução Cordélia Magalhães; A literatura e a vida,– São Paulo: Arx, 2004. pág. 351
Vargas Llosa, Mario – A verdade das mentiras/ Mario Vargas Llosa; Tradução Cordélia Magalhães; A literatura e a vida– São Paulo: Arx, 2004. pág. 352
Vargas Llosa, Mario – Cartas a um jovem escritor: “Toda vida merece um livro”./Mario Vargas Llosa; tradução de Regina Lyra; Capítulo 6: O Tempo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
Vargas Llosa, Mario – O Falador/ Mario Vargas Llosa; tradução de Remy Gorga Filho; pág. 7, Rio de Janeiro. F. Alves, 1988
Vargas Llosa, Mario – A casa verde. Tradução de Remy Gorga Filho – F. Alves – 2º Edição, 1989
Vargas Llosa, Mario – O paraíso na outra esquina/ Mario Vargas Llosa. Tradução Waldir Dupont. 3º Edição – São Paulo. Arx – 2006.
Vargas Llosa, Mario – Batismo de fogo. Editora Nova Fronteira, 1963. Pág. 87
Vargas Llosa, Mario –Quem matou Palomino Molero/Mario Vargas Llosa. Editora ; tradução Wladir Dupont. São Paulo. Arx – 2003
Vargas Llosa, Mario –Conversa na Catedral/Mario Vargas Llosa. Editora ; tradução Wladir Dupont.São Paulo. Arx – 2004
Vargas Llosa, Mario –A festa do bode/Mario Vargas Llosa. Editora ; tradução Wladir Dupont.São Paulo. Mandarim– 2000
Vargas Llosa, Mario – Pantaleão e as visitadoras/ Mario Vargas Llosa; tradução de Ari Roitman, Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007
Vargas Llosa, Mario – Tia Julia e o escrevinhador/ Mario Vargas Llosa: tradução de Ari Roitmn e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007
Vargas Llosa, Mario – Travessuras da menina má / Mario Vargas Llosa; tradução de José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006
Vargas Llosa, Mario – A Linguagem da Paixão. Mario Vargas Llosa; tradução de Wladir Dupont. São Paulo: Arx, 2007
Vargas Llosa, Mario – Dicionário Amoroso da América Latina. Ediouro – 2007.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

pensamentos esparsos

o amor transparente é invisível

dar tempo ao tempo é oferecer esmola para rico

no vazio sem margens há descoberta do espaço

sombra boa depende da existência da luz

a prata derretida da Lua ainda é poesia?

no naufrágio da vida as válvulas de escape sempre fazem água

o vício nasce da vontade

em princípio mulher tem que ter finalidade

a eternidade começa depois da morte

o passado seguiu futuro próprio

o presente não deve ser embrulhado

não se tem os melhores prazeres da vida com os pés no chão

é melhor organizar a bagunça que estabelecer a ordem

uma sombra boa só desaparece quando a luz se apaga

a matemática da química é a tática da força anímica

os escorpiões são como samurais

escorpiões cometem harakiri

a vida é uma casa de tolerância nos dois sentidos da palavra

o amor é uma paixão abnegada

o deprimido é um bicho preguiça

um currículo de látex mesmo promíscuo evita a AIDS

só o sol pode esperar tranquilo o entardecer

PENSATEMPO

o que de fato importa

é a vida que se leva,

seja banhada em luz

ou coberta pela treva;


há quem goste mais do dia,

outro do hábito noturno,

importa é quem não adia

o que tem de acontecer;


vigília em ânsia ou calma

há mesmo em sono profundo,

cria mais quem possuir

um coração vagabundo;


riqueza hoje é ter tempo

sem preocupar-se com nada,

viver é um passatempo

quando não há omissão;


trabalho é apenas meio

de fim bem justificado,

a viúva tem um seio

e do outro lado tem outro;


importa é compartilhar

o que há de verdadeiro,

pois o espeto é de pau

só na casa do ferreiro;


e o erro mais aproxima

quem tem tempo para errar,

viva o errante vagabundo

que está na esquina próxima;


mas se o tempo for o grão

precioso do momento,

mesmo que seja escasso

irei jogá-lo ao vento;


o tempo é um passatempo,

pense-o em como o gastar,

saciedade há na vida

somente se a vida bastar.