MAR IGNÓBIL

MAR IGNÓBIL
LIVRO LANÇADO EM 2010

segunda-feira, 31 de maio de 2010

A vida da pedra

Era uma vez uma pedra gigantesca que do alto da montanha observava o mundo ao seu redor. A pedra residia incrustada na montanha há sete mil e oitocentos metros de altura. De cor diferente da montanha, exibia um tom puxado para o marrom com veios brancos e com várias pontas que variavam de tamanho e formato, lembrando um imenso pacote mal embrulhado e amarrado com barbante. Estava ali talvez, desde o início dos tempos, sem idade ou mesmo período geológico. Como saber? Naquela imensidão, no silêncio, e tendo somente como testemunha o céu, as nuvens e o frio intenso, o porquê daquela magnífica rocha que se destacava na montanha de cor negra.
Séculos e séculos foram observados atentamente pela majestosa pedra. Viu o azul mais intenso do céu e a noite mais estrelada; sentiu o frio mais cortante que existe e se aqueceu com os primeiros raios de sol. Observou longamente ao contorno das montanhas, uma após outra durante um tempo infindável, as viu mudarem de forma, desaparecerem e surgirem mais adiante, às vezes cobertas de neve e outras mostrando seus dorsos terrenos, exibindo o renovar da natureza intocável.
Quantas belezas, mudanças e sabedorias a pedra pode assistir? Quanto tempo para presenciar tamanha força e graça? Estas respostas não estão à disposição de ninguém, somente a pedra pode responder.
Era verão e a neve derretia, formando pequenos riscos sobre a pedra e tornando suas protuberâncias cobertas de gelo transparentes, formadoras de pequenos arco-íris que enfeitavam magnificamente o lugar.
Todo o verão isto acontecia e ninguém podia imaginar que após esta infinidade de tempo algo poderia mudar naquele cenário. A água escorrendo século após século, marcando a pedra de forma aleatória, construía um sulco profundo em sua base junto à montanha. Não precisou de mais três séculos para que numa avalanche a pedra se soltasse e rolasse dois mil e trezentos metros montanha abaixo, só parando em uma fenda de gelo que amortecera sua queda.
Nesta vertiginosa queda seu tamanho e formato modificaram-se bastante, formaram-se outras protuberâncias, algumas reentrâncias e caprichosamente um furo em forma de arco alongado que atravessava sua superfície superior. Seu formato não lembrava mais um quadrado, mais sim algo mais parecido com um ovo, Longo no seu diâmetro maior e achatado no diâmetro menor. E ali ficou parada, inerte, a espera do que pudesse vir a acontecer.
Os ventos que ali castigavam o local eram intensos, ora velozes, ora lentos e frios ou de forma turbilhonar. As chuvas eram gélidas, e às vezes carregadas de granito outras vezes com muita neve e vento. Toda esta exuberante força ao passar pela pedra entoava uma canção. Quando ocorria somente o vento, parecia uma orquestra de violinos; o vento e a chuva já introduziam chocalhos e fagotes; o vento turbilhonar, ao passar pelo orifício da pedra chamava as flautas: a chuva de granito os tambores. Que linda sinfonia! Que novamente era escrita a cada pequeno e milimétrico movimento da pedra empurrada pelo o vento.
Muitas verdadeiras obras de arte foram escritas e executadas por milhares de anos naquele lugar sem que ninguém pudesse ouvir. Somente a pedra, autora e performática ficariam sabendo do ocorrido.
Novamente o destino quis interferir e mudar toda a sua trajetória. O derretimento da geleira fez a pedra rolar montanha abaixo por cerca de mais três mil metros, fazendo que novas modificações em sua anatomia e tamanho fossem processadas. Agora ela já perdera a exuberância do seu tamanho, havia poucas protuberâncias, decepadas pelo rolar montanha abaixo, seu furo já não existia e sua cor ficou mais forte, principalmente próximo aos veios brancos que jamais perdera. O local onde agora residia era muito mais quente e em certos períodos a neve desaparecia para surgir o terreno coberto por grama verde que alimentava animais de porte enorme, com chifres e corpos coberto de espesso pelo.
E mais uma vez a pedra ali ficou outra eternidade. Testemunhou a evolução de varias espécies, viu desaparecerem outras tantas, e neste período, século após século modificou-se muito pouco, perdendo seu formato de ovo e tornando-se mais redonda. Fato este que a fez novamente rolar pela montanha sofrendo encontrões, perdendo pedaços e ficando cada vez mais redonda. Desta vez a pedra chegou a um rio e descansou cem metros após sua nascente.
Agora, sua maior função era abrigar ovas de peixes que, todos os anos, ali chegavam para desovarem e morrem. Eram peixes lindíssimos, de cor avermelhada, que exaustos após a longa viagem de volta ao local de nascimento, reiniciavam um novo ciclo de vida, sem deixar também, no fim de suas vidas, alimentarem uma infinidade de outras espécies, como os ursos pardos, aves e até outros peixes. Mas as ovas que a pedra escondia geralmente estavam bem protegidas. E por milhares de anos ali ela ficou, libertando toda primavera, um número incontável de alevinos que rapidamente seguiam para o mar em busca de seus destinos.
A correnteza do rio a cada século aumentava sua força, principalmente durante o verão e lapidava a forma da pedra e a deslocava milimetricamente, fazendo em certo momento um longo deslocar, rio abaixo, da nossa viajante. Mais uma vez em movimento, atravessou quilômetros de distância, ora lentamente, ora velozmente; às vezes em pequenos saltos e outras pulando de magníficas cachoeiras.
No fim de mais esta viagem, na foz do rio, voltou a descansar, próximo à margem, com milhares de outras pedras, todas de tamanhos parecidos, arredondadas e lisas. Mas ela ainda se destacava, não mais pelo seu tamanho, mas sim pela sua cor e por seus veios brancos, que, como sempre, conferiam-lhe uma beleza diferenciada.
Certo dia, um homem que por ali passava observou-a, distinguiu-a das outras, segurou-a na palma da mão e admirou sua inconfundível beleza. Colocou-a no bolso e caminhou para fora do rio, mas não aquentou o peso de tamanha responsabili-dade, algo o incomodava, parecia que estava cometendo um crime. Voltou ao rio e deixou a pedra no mesmo lugar onde a encontrara.
E a pedra seguiu sua vida.
Alberto Daflon

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Paixão

De Romeu por Julieta
Um vício dominador
O olhar fixo do marujo
Na Braga da amarra
Do avarento às moedas
O objeto da paixão
A emoção com intensidade
Sobrepondo-se a lucidez
E distorcendo a razão
O que sinto por você
Eu chamo de paixão

Alberto Daflon

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Dor revisitada

Foi uma cara de gárgula,
máscara sobre tecido,
tenso da face esgarçada,
que atirei contra tudo.
Infenso a qualquer sorriso
sentia dor refratária,
de boticão sobre siso;
como se fosse um pendor
ter sangue sempre em fervura
tentando abrir a boca,
por meio de queimadura
mesmo que ficasse oca
com a palavra em clausura
e sem língua que a falasse,
esturricada à nervura
por baixo calão sem classe.
Tinha cabeça em masmorra,
como pedra contorcida,
mas antes que o sangue escorra,
desejo falar da vida.
Embaixo daquela gárgula,
tinha cara barbeada,
pêlos na pia ensebada,
e no espelho um canalha.
Então a dor era um vício
de firmeza escarmentada,
quase virara um ofício
para varar madrugada.
Capaz de moer a carne,
como um câncer mói textura,
e a moenda mói a cana
para virar rapadura.
Agora estou no bagaço,
como disforme emplastro,
meu sangue deixa um rastro
que sigo como a um regaço
no sentido da nascente.
Mas caio em queda livre
em funduras de calibre,
mas nos braços de ninguém.
Dói nos lábios e entranhas,
nos dentes em extrusão,
dói nos vícios e nas manhas,
dor expressa em convulsão.
Dor, consumptiva, doida,
sequer de si condoída,
para o pássaro alçapão,
constante em sua construção.
Em máquina de moer carne,
para esfacelar completo,
de onde sairá cuspida,
como esputo de um tísico.
Dor indisposta ao gozo,
em fuga se põe adiante,
jamais concede repouso,
não quer ser extasiante.
Descontrair dor tamanha,
sem fingimento ou ópio,
nem usar de artimanha
da dor do maior opróbrio,
é abrir mão da ubiqüidade
das garras que o demo tem,
sem com isso ser vaidoso,
sem com isso usar ninguém.
Pois sem o diabo, incréu,
na certa eu não seria enfermo,
foi com dor dos meus infernos
que escrevi algo no céu.
Faço agora um exorcismo
da dor que o demo traz,
não foi mágica zás - trás,
que me trouxe belo trismo.
Mesmo quando garatujo,
é por dor ser mitigada,
coração no peito sujo,
minha alma ensangüentada.
Então amo o feio e o belo,
amo íncubo fustigado,
com vara verde ou marmelo;
compaixão merece o gado
marcado a ferro e fogo;
entre bois também meu berro
muge, mas não faz mais rogo,
meu coração em desterro
bate no peito de novo.
Meu mediastino infla,
o demo não mais me insufla,
nem significa estorvo;
na alma o estrago foi feito,
não dói mais como doía,
cicatriz não é defeito
engrazado com fio guia,
dói tão-só na aparência,
em luz incruenta e fria,
luz que queima minha essência,
mais que a dor da epifania.
Deus, então, também espere:
se em disputa minha alma,
ao Demo clama por calma,
espere que o diabo erre,
sou apenas um mortal,
sob quem dor infligida
veio do bem e do mal
para me ceifar a vida.
Enquanto a vida é ceifada,
como feno para eqüinos,
dionisíaco, conturbo,
do mal toda empreitada;
do equilíbrio de uma corda,
bamboleio sem estar ébrio,
entrego a mim próprio as rédeas
do cavalo em disparada;
rumo ao sol como miragem,
de tudo que fiz de mim,
das virtudes e dos vícios,
sinto-me livre enfim.
Então, chego ao princípio,
sem abismo, não há fundura,
sou mesmo cavalgadura,
ou centauro um tanto ímpio,
é no corpo que cavalgo
de quadrúpede sobre obstáculos
que sou homem de respaldo
à alma do eu dividido.
Cindido, tenho dois braços,
aos dois anulo em ação,
com os dedos assino distrato,
é só meu, meu coração.

domingo, 2 de maio de 2010

Neurose

Dona Constança, minha professora primária, corpulenta de voz alta e sempre rouca, parecia estar sempre à beira de uma síncope. Eficiente, comandava a turma com segurança e severidade.
As matérias por ela ensinadas fluíam de forma seqüencial divididas somente pela hora do recreio, onde nas brincadeiras extravasávamos nossas tensões.
A atenção exigida pela professora era de minha parte extremada, por temê-la, nada perdia de suas aulas, das quais pouco aprendia, embora minhas notas lhe agradassem. Coisa que só pude compreender muito mais tarde.
Em tempo, pois quase me esqueci de citar um fato importantíssimo, que desde seu ocorrido me atormentou e moldou minha personalidade e meu caráter. O momento do lanche na sala de aula de uma escola pública, frequentada por crianças de classes sociais diferentes, preparava-me uma grande lição.
Nós, os alunos, crianças atormentadas por nossa professora muito eficiente e severa, não atentávamos para as diferenças sociais, que sequer sabíamos que existiam. Éramos iguais, pactuados em não descontentar a professora e aprender seus ensinamentos, mesmo não entendendo para que eles servissem. Éramos pares em nossos medos e nas nossas brincadeiras.
Naquela manhã, a senhora merendeira entrou pela sala com seu carrinho de lanches e iniciou de uma carteira a outra a distribuição dos acepipes. Um casadinho de biscoito de maizena com goiabada, acompanhado de leite achocolatado, uma delícia que esperávamos sob o olhar atento de nossa professora, educadamente em nossos lugares.
Cosme, um dos alunos que tinha assento próximo a mim, sempre melequento e desatento às aulas, era sempre vítima de prolongados sermões de Dona Constança. Ao receber o lanche da senhora merendeira, foi premiado com três casadinhos do biscoito com goiabada.
Ao ver o atendimento diferenciado ao colega, inocentemente questionei a diferença de tratamento ao colega de turma. Foi o pior momento de minha vida. Dona Constança, severamente ensinou-me, de uma tacada só, o que é diferença social, gulodice, ganância e pobreza. Como eu, um garoto de classe social privilegiada, que nunca passara fome, que tinha de tudo de bom e melhor, pleiteava merenda igual à do meu colega Cosme, um pobre menino que segundo nossa professora não tinha onde cair morto.
Cobri-me de vergonha e baixaestima, não consegui nem mesmo aceitar a guloseima, que joguei fora logo após a insistente merendeira, apesar de minhas negativas, a deixar sobre a minha mesa. Fato este que gerou novo sermão enfurecido de nossa digníssima mestra.
Deste dia em diante, jamais aceitei a merenda escolar e nunca mais dirigi a palavra a minha professora primária. E para afastá-la de mim, estudava suas aulas e conseguia boas notas. Percebia que meu desprezo a afetava, mas pouco poderia ser feito, não havia mais nada a salvar.
Este ocorrido e a disciplina com que persegui fazer a coisa certa moldaram de tal maneira minha personalidade que cresci com autocrítica exacerbada que atingia a todos a minha volta. Sofrimento e vergonha a cada erro cometido eram meus companheiros e às vezes alcançavam meus mais queridos, parentes e amigos. Uma vida perseguindo a perfeição, tão distante e escondida dos humanos.
“O sortilégio fora conjurado! ---Foi assim que fiquei sabendo o que é neurose.”

Alberto Daflon