MAR IGNÓBIL

MAR IGNÓBIL
LIVRO LANÇADO EM 2010

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Os hippies em Guarapari – Três praias: 1971.

Na Tijuca, Rua José Higino, perto da perpendicular Aníbal Moreira, havia nos anos sessenta e setenta a turma da esquina, um bando de cabeludos com idades variantes de 15 aos 28, 30 anos no máximo. Eu tinha apenas 17 anos quando pus o pé na estrada. Sou aquariano, nasci no verão. Festejei muitos aniversários em dias de folia momesca. Em dezembro de 1970, os jornais noticiaram que haveria, antes do carnaval, o Festival Hippie de Guarapari, em Três Praias, hoje uma reserva florestal a beira-mar no Estado do Espírito Santo. Vou nessa, pensei. Pedi a meus pais o dinheiro para a passagem. Só vai se outros amigos seus forem juntos, disseram eles. Oquei. Perguntei se o Ricardo estava a fim de ir, Sim. Perguntei se o Guilherme queria, Sim. Compraríamos uma barraca, alguns mantimentos. A propaganda do evento rezava que haveria água potável para todos, banheiros, como se a quase virgem Três praias fosse um camping. Para quem não sabe, nas orlas das praias de Vitória, cidade do meu domicílio, há muitos hippies ainda hoje, com artesanatos na calçada postos à venda sobre uma manta de couro. O Festival Hippie de Guarapari foi, guardadas as devidas proporções, o Woodstock a brasileira.
Ricardo, hoje engenheiro, contraiu um apelido que nunca mais saiu da sua pele. Um dia, junto com uns cinco da esquina, perto da Igreja da Candelária, na Praça Pio X, ele perguntou - Que Praça PIOX é esta?
O apelido pegou tanto que até seu pai, da janela do quarto andar do prédio do Edifício Karmiol, chamava-o pelo vulgo: PIOX!...PIOX!...PIOX!... Parecia mais um pássaro da idade da pedra, um pterodáctilo, logo apelidado de TURU, ele gritava de sua janela: PIOX!...PIOX!...PIOX!...E a turma da esquina berrava de volta: TURU!...TURU!...TURU!...
Achávamos que TURU não ia deixar o PIOX ir, mas ele deixou; compramos a barraca e os gêneros tipo feijoada enlatada, macarrão, lingüiça e outras conservas, inclusive picles. Chamei uma prima que estava noiva, com o namorado na Europa e Laura chamou Virna, sua prima e em segundo grau também minha.
Exceto por um lupanar em Porto Novo do Cunha, cidade mineira as margens do rio Paraíba do Sul, aonde tive minha primeira experiência sexual mal sucedida, era um adolescente com poucos abraços e beijos em minha incipiente carreira de Don Juan. Viajei com Virna ao meu lado, e na noite de viagem ficamos abraçadinhos, mas quando chegamos ao local do festival ela tomou seu rumo e sumiu do mapa. Jamais esqueci sua blusa de seda, sem sutiã com seios redondinhos e mamilo a quase rasgar a seda.
Levamos uma garrafa de rum, de tóxicos nada sabíamos. Logo no terceiro dia Virna melou a barraca com um leite condensado que derramou dentro dela. Saúvas fizeram uma festa. Dormimos ao relento por uma noite, após uma faxina com água do mar. Sim, nada do que a imprensa propagandiara correspondia à realidade. Ficamos seis dias tomando banho de mar. Laura e Virna sumiram. Só as vimos pegando carona de volta num carro com dois marmanjos.
A bandeira do acampamento dos hippies tinha duas flâmulas: uma calcinha e uma cueca, atadas a um arbusto desfolhado no meio do acampamento, entre as barracas. Bahiano, um dos hippies toda manhã recolhia uma grana para ir comprar o pão na cidade, tinha só quatro dedos numa das mãos, como o Lula, nosso Presidente. Fizemos amizade com ele e com um cara muito especial – o Rômulo.
No dia em que dormimos fora da barraca por causa das formigas, Guilherme dormiu com a cabeça voltada para a fogueira, como não existia água potável fizéramos numa trempe improvisada a macarronada com água do mar. Acordou pondo os bofes para fora, eu e PIOX tivemos que leva-lo a uma clínica em Guarapari, onde fez hidratação venosa. Tivera uma intermação. O custo do tratamento esvaiu quase todos os nossos recursos, mesmo após difícil negociação por abatimento. Não poderíamos gastar mais nada. Os mantimentos estavam perto do fim.
Perdemos assim a oportunidade de pagar os ingressos para entrar no festival, ficamos ouvindo do lado de fora, certo momento eu e Guilherme voltamos para a barraca com uma hóspede.
A droga que rolava era a maconha. Bebemos nosso rum, Rômulo tocava violão e logo duas mineiras que tinham casa perto da área se encantaram com o rapaz de 19 anos e extremamente sensitivo em relação à natureza. Acho que as duas se apaixonaram por Rômulo, cumularam-no de atenções, e na carona do charme do nosso novo amigo fomos convidados para ir tomar banho e almoçar na casa das mineiras. Como fomos bem recebidos! Que Hospitalidade a mineira! Comemos até forrar a tripa.
Sobrara nos nossos mantimentos uma lata de azeite, uma de goiabada e um toddy. No dia seguinte fomos para a estrada. O Espírito Santo tem nas marmorarias e pedras em geral uma grande fonte de renda, exporta para o estrangeiro e vende a bom preço para a construção civil.
Pegamos carona num caminhão que tinha uma enorme pedra mármore ao centro da carroceria, nós (eu, PIOX, Guilherme e Rômulo) e uma cambada de hippies. De repente começou a rolar um baseado para todo mundo fumar, peguei a bagana e nem botei nos lábios, estava toda babada e sentia medo do que pudesse vir a sentir se fumasse.
Dormimos num posto de gasolina, precisávamos chegar até Campos dos Goitacazes, onde teríamos ainda o dinheiro para pagar a passagem até Niterói, domicílio de Rômulo. Lá ele disse que seus pais dariam dinheiro para a gente chegar ao Rio de Janeiro. No posto, dormi no chão e a lata de azeite me serviu de travesseiro.
Conseguimos a carona até Campos, pegamos o ônibus, tomamos novo banho na casa de Rômulo e fomos servidos com um lauto almoço com arroz, feijão, carne assada, batatas, água e refrigerantes.
Bahiano sem rumo na vida veio conosco.
Com o dinheiro da passagem nós (eu, PIOX, Guilherme e Bahiano) chegamos à Tijuca perto da meia noite. Não quis acordar meus pais, morava no apartamento 101 do Edifício Karmiol, escalamos a varanda sem grades e dormimos nela na noite de verão.
No dia seguinte, batemos na porta da varanda cedo, as vozes conhecidas acalmaram minha mãe. Era domingo. Fui à padaria comprar mais pão, presunto, queijo, leite. Os três e minha família ficaram juntos até o almoço.
Bahiano pegou sua mochila e nunca mais o vi.
PIOX e Guilherme foram para suas casas e são meus amigos até hoje.
Quando minha calça Lee foi lavada, ficou toda esfiapada nos fundilhos e nos joelhos, depois vi calças semelhantes serem vendidas naquele mal estado em butiques e lojas.
Três Praias se chama Três Praias por que tem duas pedras que adentram o mar ao feitio de piers, que dividem a praia em três partes. Um lugar inesquecível.

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